Romina Alves, Psicóloga (UP) e Professora em PLE (IES LV "JRF”), analisa os mitos redentores no imaginário social português e o reflexo das produções sócio-históricas na idiossincrasia dos portugueses, a partir de uma análise do período compreendido entre a revolução dos cravos (1974) e a atualidade.
25 de abril: Mitos redentores e esplendor português
A filiação de Viriato em tempos de Troika
Romina Alves
“...E os que esperam ainda nas naus romãnticas
lusíadas parados no Rossio
filhos de Viriato pálidos e desarmados
falam em D. Sebastião à mesa dos cafés
os que não se afogaram nas águas atlânticas
frustrados habitantes dum navio
que nunca foi além dos sonhos adiados
marinheiros de agosto que molham no mar os pés...” [1]
[1] Fragmento do poema “Cronicas dos filhos de Viriato” de Manuel Alegre.
Introdução
O seguinte trabalho visa oferecer uma reflexão sobre o período histórico decorrente entre a revolução de 25 de abril de 1974 e a atualidade da sociedade portuguesa, propondo como eixo de análise os mitos redentores presentes no imaginário social português e o reflexo destas produções sócio-históricas na idiossincrasia do povo e no devir histórico do país. Neste sentido, é importante salientar que o conceito escolhido como elemento norteador e articulador irá ser o proposto por Febvre, a saber: a noção de mentalidade. Considera-se que este contributo vindo da escola dos Annales é de muito valor para compreender os fenômenos que vão além dos fatores materiais dos processos históricos, permitindo uma captação da configuração de ideias próprias de cada momento em particular (Robertazzi, s/d; Duby, 1992). Neste sentido é que convém lançar mão da preponderância das construções míticas em cada cultura e, particularmente, no sentido que o povo português outorga a determinadas figuras e evocações enquanto construtoras do sentido de identidade do povo e do sentimento nacional. “Levantai hoje de novo o esplendor de Portugal!” ordena a pátria canção que evoca a voz daqueles egrégios avós fundadores, num “hoje” que desvenda um tempo sem tempo, um tempo 0, um tempo mítico de esplendores, lutas e sucessos, que investe diferentes figuras ou processos à maneira dum verdadeiro imperativo de redenção.
Assim, pensa-se que o Sebastião de ontem se encarna nas expectativas de todo um país diante da força revolucionária e libertária daquele 25 de abril ou perante a adesão aos ditados da UE, evidenciando uma maneira particularíssima de agir, pensar e sentir que permite refletir as singularidades dum Portugal que, ainda em tempos de Troika, anda errante à procura duma tal “Vila Morena” que ampare os “sonhos adiados” desses filhos de Viriato[1] que compõe a pátria lusitana.
Os mitos redentores e o 25 de abril: Entre as trevas da memória e a utopia lusitana
No dia 25 de abril de 1974 ocorreu em Portugal a revolução que levou o país à libertação dum regime ditatorial que permaneceu 40 anos. Ferreira (s/d) coloca que nesse momento a sensação geral de alívio percorreu a sociedade, pois o estado se desembaraçava dum regime ditatorial que levava o país ao beco sem saída das guerras pelas colônias de além-mar. Este movimento revolucionário acontecia num cenário internacional marcado pelo declínio de um Ocidente atingido pela inflação e pela retração do poder americano (Vasconcelos e Sousa & Monteiro, 2010).
O povo vivia sob a opressão dum governo que impunha medidas de censura e perseguição através da criação de diferentes corporações como, por exemplo, a PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado). Por outro lado, o empenho que existia em manter os conflictos na África e noutras colônias fazia com que os recursos econômicos sofressem uma significativa retração juntamente com os recursos humanos das forças armadas e o alto índice de migrações produzidas durante esse período, fatos que faziam com que se mantivesse uma grande crise econômico-financeira (Ferreira, s/d; Vasconcelos e Sousa & Monteiro, 2010).
É considerando esta situação de profunda crise e descontentamento do povo, tão bem refletida em filmes como Capitães de Abril, que a ideia de revolução e queda do regime advém no imaginário do povo português como uma utopia libertária que passa a ter uma correspondência nos modos de agir e na estética de diferentes áreas da atividade das pessoas como, por exemplo, na publicidade e nas expressões culturais[2].
A respeito das transformações culturais e educativas acontecidas a partir da revolução de 25 de abril, Pintassilgo (2014) coloca que aquele período pode ser considerado como uma autêntica vivência de utopia que permitiu, no campo da educação, um verdadeiro laboratório de experiências pedagógicas. Este autor salienta que o ambicioso projeto de construir uma sociedade nova, um homem novo se apresentava nos discursos de muitos setores da sociedade expondo, de forma aparentemente paradoxal, “tanto a crença messiânica na transformação operada pelo momento mágico representado pelo 25 de Abril como a convicção de que se tornava necessário investir nessa construção do novo, designadamente por via da transformação da educação, parte integrante de uma assumida «revolução cultural»”.
Considerando estes contributos e o valor dos mitos fundamentais na estruturação da idiossincrasia dum povo é que se pode pensar na hipótese da existência dum fenômeno de investimento do processo revolucionário a modo de redenção, salvação duma forma de opressão na qual o corpo era o que pagava[3], pagava com o sometimento, com o adiamento de projetos de futuro e, às vezes, com a morte no campo de batalha, algures, nalguma terra colonial em conflito. Daí que depois daquele abril a sociedade portuguesa passara a agir sob a ilusão dum esplendor renovador e levantara a partir da voz do povo e da ação conjunta dessa voz que, pelo menos naquele dia, mais ordenou conforme indicava um dos emblemas de revolução, a saber: a canção de Zeca Afonso “Grândola Vila Morena”.
E depois de abril... A primavera lusitana e os tempos de pós-revolução
O periodo da pós-revolução se caracterizou por firmar o princípio do Estado de Direito, da soberania nacional e das liberdades de expressão ou de reunião (Vasconcelos e Sousa & Monteiro, 2010). Conforme estes autores, a maior singularidade deste trecho de tempo foi o estabelecimento de instituições que tornaram possível à oposição, através de eleições abertas a todos os cidadãos adultos.
O exercício livre da cidadania reforçava a utopia lusitana da primavera pós-revolucionária consolidando a democracia. Quanto às guerras coloniais, no ano 75 declarou-se a independência das colônias africanas aos movimentos independentistas dos correspondentes países. Esta conjuntura trouxe uma série de efeitos na economia portuguesa gerando, com o decorrer das décadas, novos descontentamentos e uma regressão do país em termos financeiros que o obrigaram a pensar em novas medidas (Vasconcelos e Sousa & Monteiro, 2010).
Como consequencia do 25 de abril e do impacto que as guerras tiveram na economia portuguesa, em 1977 Portugal apresenta a sua candidatura de adesão à Comunidade Económica Europeia (CEE), passando a ser membro de facto só em 1 de janeiro de 1986. Esta adesão irá ser vivida pelo povo como uma espécie de nacionalismo mystico, reforçando as tendências messiânicas que foram expostas com anterioridade. Em diferentes artigos que falam a respeito do momento da adesão do país à CEE, nota-se o grande depósito de fé naquela ação e na expressão dalgumas figuras da política que consideram àquele momento de adesaõ como sendo “Um dos dias mais marcantes da história portuguesa[4]“. Estes gestos lembram as colocações que fizera Pessoa (2011) a respeito do nomeado conceito de nacionalismo mystico, espécie de sentimento nacional com acento messiânico. “O messianismo, para além das várias contingências históricas, é a esperança na intervenção divina que porá termo ao mal da humanidade” (Ribeiro, s/d; Uribe & Sepúlveda, s/d).
União Europeia: Desde a ilusão redentora aos tempos de Troika
Uma matéria do PCP (Partido Comunista Português) que expõe os resultados de 30 anos de adesão à CEE permite pensar na queda estrepitosa da ilusão redentora que representara o que noutros tempos, e ainda hoje, se considerara como uma das ações mais importantes da história portuguesa[5]. A marcha de Portugal sob as indicações de organismos internacionais de crédito e o endividamento do país acarretaram ajustes e o enfraquecimento do poder econômico do povo. A operatória da Troika aprofundou o mal-estar na população como consequência das medidas que esta trilogia tomara. É importante lembrar que a Troika é composta de três elementos, a saber: a Comissão europeia, o Banco Central Europeu (BCE) e o Fundo Monetário Internacional (FMI), estas organizações impõem ao país uma série de sugestões que empurraram a população a situações de urgência econômica, produzindo uma série de respostas que acordaram no imaginário coletivo evocações daquela utópica Grândola Vila Morena[6].
Neste cenário, começaram a surgir em Portugal movimentos que, como consequência da crise de legitimidade que atinge o país, pretendem através da ação coletiva gerar respostas de resistência. Esse ciclo de ação coletiva teve o seu acontecimento fundacional na manifestação da Geração à Rasca e a sua expressão mais recente nos protestos convocados pelo grupo Que se Lixe a Troika, a partir de 2011 (Soeiro, 2014).
É possível perceber, neste tipo de ações, uma certa continuidade das hipotéticas tendências redentoras presentes nas produções do povo. De certa forma a criação e recriação de expectativas na própria força de vontade e na evocação de estratégias doutrora úteis denotam a pregnáncia de uma mentalidade singular de transcendência primordial na constituição identitária, pelo menos isto é o que lhe ocorre a quem assiste a comovente imagem de todo um povo perante o leme da própria ação sob a invocação da magia desses hinos que noutros tempos encheram de cravos as ruas[7].
Conclusão
As produções coletivas são de imensa importância para compreendermos os processos socio-históricos, pois permitem uma aproximação ao âmago dos sedimentos culturais e idiossincráticos de um povo. Neste sentido, o objetivo da presente proposta se orientou a inquirir aqueles elementos que se consideram constitutivos e próprios da mentalidade lusa.
Os mitos fundamentais de cada cultura norteiam os modos de agir, pensar e sentir daquelas pessoas que partilham traços identitários e um determinado imaginário social-histórico-cultural, a força destas construções não conhece de fronteiras temporais ou geográficas, trasvasa qualquer distância e habita nessas construções próprias do humano e veiculizadas na máxima expressão de um povo, na sua língua. “Minha pátria é a minha língua” afirma Pessoa, a quem desde o presente poder-se-lhe-ia responder “na minha língua jaz a minha história e nesta jazemos todos como peças de um ontem que se reproduz num hoje“. Neste sentido, pensa-se na importância da reflexão a respeito da questão estrutural das mitologias nacionais e nas mentalidades, visto que estes elementos permitem desvendar os sentidos latentes nas escolhas de um povo. No caso analisado, o caso das elaborações míticas de cariz redentor e a sua relação com o decorrer histórico, político e social do povo português, nota-se como em cada situação de viragem opera algo daquela ilusão mystica descrita por Pessoa e elucidada pela noção de mentalidade. Considerando essa tendência redentora enfática nos diversos acontecimentos e processos só resta esperar que dalguma vez “a sombra duma azinheira” sem edade ofereça sossego as ilusões de tantos “marinheiros de agosto que molham no mar os pés”.
Bibliografia citada e consultada
Álvaro, R.; Domingues, J. (1990). “A Visão Messiânica do Advento da República” em Revista Portuguesa de Filosofia. T. 46, Fasc. 4, Filosofia em Portugal, pp. 479-512. Consultado em: http://www.jstor.org/stable/40336005?seq=1#page_scan_tab_contents. Acesso em: 24/6/2015.
Ferreira, M. (s/d). História de Portugal. Consultado em: http://ieslvf.caba.infd.edu.ar/aula/archivos/_86/Ferreira%20Do%20golpe%20de%20estado%20a%20Revolucao.pdf. Acesso em: /7/2015.
Pessoa, F. (2011). Sebastianismo e Quinto Império. Edição, introdução e notas de Jorge Uribe e Pedro Sepúlveda. Lisboa: Ática.
Robertazzi, M. ; Pertierra, L. (s/d). “Psicología Social Historica”. Ficha de cátedra.
Uribe, J. ; Sepúlveda, P. (s/d). “Sebastianismo e Quinto Império: Nacionalismo pessoano à luz de um novo corpus”. Consultado em https://www.brown.edu/Departments/Portuguese_Brazilian_Studies/ejph/pessoaplural/Issue1/PDF/I1A03.pdf. Acesso em 29/6/2015.
Pintassilgo, J. (2014). A Educação em tempos de Revolução (nos 40 anos da Revolução do 25 de Abril de 1974 em Portugal). Espacio, Tiempo y Educación, 1(2), pp. 13-19.
doi: http://dx.doi.org/10.14516/ete.2014.001.002.000
Soeiro, José. (2014). Da Geração à Rasca ao Que se Lixe a Troika: Portugal no novo ciclo internacional de protesto. Sociologia, 28, 55-79. Recuperado em 06 de julho de 2015, de http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0872-34192014000200004&lng=pt&tlng=pt. .
Vasconcelos e Sousa, B. ; Monteiro, G. (2010). História de Portugal. Lisboa: A esfera dos livros.
[1] O grande herói da Tribo Lusitana. A. 180 a.c.
[2] Material fornecido pelo documentário disponível na RTP. http://www.rtp.pt/play/p1537/estetica-propaganda-e-utopia-no-portugal-do-25-de-abril
[3] Referência à canção “O corpo é que paga“ de Antonio Variações. https://www.youtube.com/watch?v=R8DrXK8WS4k
[4] http://www.noticiasaominuto.com/economia/387837/adesao-de-portugal-a-uniao-europeia-foi-dia-marcante
[5] http://www.pcp.pt/30-anos-da-assinatura-do-tratado-de-adesao-cee
[6] https://www.youtube.com/watch?v=BwXkqHRkUpk
[7] Refere-se às conhecidas manifestações contra a Troika levadas à frente com considerável periodicidade no Terreiro do Paço, onde as pessoas reunidas costumavam cantar a já referida canção de Zeca Afonso.