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Bora falar de racismo?

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    Mariana Cuello
  • hace 7 horas
  • 11 Min. de lectura

Quem pode falar sobre racismo? A partir dessa pergunta provocadora, o artigo explora o conceito de lugar de fala como chave para refletir sobre identidade, cidadania e desigualdade no Brasil. Com base em autoras como Djamila Ribeiro, Patricia Hill Collins e Marielle Franco, o texto convida à escuta atenta e ao compromisso ético de repensar os discursos sobre o racismo a partir das posições que cada um ocupa na sociedade.

Bora falar de racismo?

Por Mariana Cuello*

Quem pode falar de racismo? O que acontece com o lugar de fala no Brasil?


O racismo é assunto só de pessoas negras? O que acontece quando uma pessoa branca fala de racismo? Todo mundo pode falar de racismo? Todas as pessoas falam do mesmo lugar?


Djamila Ribeiro (2018) explica que numa sociedade patriarcal e racista o uso do discurso é restrito ao homem branco (e aliás cis, heterosexual e de classe alta) e as outras vozes são consideradas o “outro”, aquilo que não é a norma. Assim, esse regime de autorização discursiva impede que esses considerados “outros” façam parte dessa estrutura e tenham o mesmo direito à voz. Nesse sentido, quando falamos de “lugar de fala” nos referimos a esse lugar social, de localização de poder dentro da estrutura que não tem a ver com a vivência individual mas sim com fazer parte de um grupo social e por causa disso compartilhar experiências. Dessa forma, a matriz de dominação atravessa as experiências vividas desses grupos sociais e obstaculiza que, por exemplo, as pessoas negras façam parte de determinados espaços e ao mesmo tempo faz com que as pessoas brancas ocupem o lugar de fala central sem ser pensado como um lugar de fala específico e sim como universal. Por outro lado, quando uma mulher negra manifesta seu discurso é considerado como um lugar de fala específico. 


Neste sentido vemos que nem só a respeito do discurso há um lugar central considerado a norma enquanto o resto é considerado a alteridade. O mesmo acontece na sociedade brasileira, como explica Chauí (2012: 73): 


É uma sociedade na qual a população das grandes cidades divide-se em um “centro” e uma “periferia”, o termo periferia sendo usado não apenas no sentido espacial-geográfico, mas social, designando bairros afastados nos quais estão ausentes todos os serviços.

Então, como é que é? Só as pessoas negras podem falar de racismo?



Não! Todo mundo pode, claro que sim. Só que uma mulher branca falando de racismo provavelmente não vai estar representando uma travesti negra. Esse assunto tem a ver com a representatividade, sobre isso Woodward (2009: 17)  fala o seguinte:


A representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeito. É por meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos. Podemos, inclusive, sugerir que esses sistemas simbólicos tornam possível aquilo que somos e aquilo no qual podemos nos tornar.

Dessa forma, a representação não é um tema menor, já que simbolicamente constrói os significados numa sociedade.


Claro que é bom que as pessoas brancas falem de racismo, que os homens cis falem de machismo, que as pessoas heterosexuais falem de homofobia e assim por diante, porque todos fazemos parte desta sociedade e se quisermos mudar a estrutura deste sistema vamos fazê-lo todos juntos e para isso é preciso que todos estejamos inseridos no debate. Mas, o que é importante nesses casos, é que na hora de falar sejam conscientes de que lugar o fazem, é importante que escutem aqueles que vivem essas situações em primeira pessoa e que sejam respeitosos em relação a isso. 


Então, o que é o lugar de fala? 


É o lugar de onde você pronuncia seu discurso, todo mundo tem um lugar de fala e é importante reconhecê-lo para não violentar ninguém e ser consciente e humilde na hora de falar de certos assuntos. Assim, o lugar de fala é uma postura ética e social, é compreender o que você pode contribuir nessa luta desde seu lugar. É preciso compreender que o local de fala não é uma análise do discurso proibitiva, é para entender de onde vem a fala daquela pessoa que enuncia aquele discurso.


Helena Vieira (2020) explica o que é o lugar de fala e insere uma concepção interessante neste assunto, ela diz que o lugar de fala tem a ver com a própria identidade (social, de gênero, de classe, de raça, etc). Explica que esse conjunto de forças atravessa o nosso discurso e compõe o nosso universo subjetivo. Assim, sempre que uma pessoa fala, seu conjunto de experiências atravessa o próprio discurso, por isso todo enunciado é necessariamente situado, ele parte de um lugar específico. Por conseguinte, os discursos não são neutros, em cada ato de fala sempre existe muito mais do que é intencionado e entendido, mas também está presente a posição social do sujeito.  


É importante salientar que se o discurso sempre depende do lugar de onde vem, isso quer dizer que os lugares de fala são diferentes. Isso vai provocar que nem todo discurso receba a mesma credibilidade, o mesmo efeito, a mesma capacidade de produzir conhecimentos, isto é, gera uma desigualdade na “economia do discurso”. Dessa forma, vemos como a identidade está profundamente relacionada com o discurso de uma pessoa. Isto acontece porque tanto a identidade como a diferença são questões linguísticas. De fato, como explica Silva (2000) a identidade e a diferença não são naturais, pelo contrário elas são o resultado da criação linguística, portanto são ativamente produzidas pela cultura e a sociedade.


Em relação ao racismo no Brasil, considerar o lugar de fala coloca várias questões, quer históricas, quer políticas e sociais. Isto é devido a que cada lugar de fala, e ao mesmo tempo cada identidade, tem um lugar bem diferente na sociedade já que historicamente há uma ampla desigualdade (social, cultura, económica, etc). 


O lugar de fala que tem cada pessoa está estreitamente relacionado com sua posição na sociedade e por sua vez com sua noção de cidadão. Fazer parte de uma cidadania tem a ver com receber certos direitos: civis, políticos e sociais. Como explica José Murilo de Carvalho (2008: 9): 


Tornou-se costume desdobrar a cidadania em direitos civis, políticos e sociais. O cidadão pleno seria aquele que fosse titular dos três direitos. Cidadão incompletos seriam os que possuíssem apenas alguns dos direitos. Os que não se beneficiassem de nenhum dos direitos seriam não-cidadãos. 

Vemos como aparece o conceito de “cidadania plena” deixando ver que em alguns casos as pessoas têm acesso apenas a alguns direitos e em alguns casos a nenhum deles. Por conseguinte, ao não valorizar a voz de quem sofre opressões está se negando sua própria cidadania que é uma forma de negar também sua humanidade.


É possível falar pelos outros? Cada pessoa só pode falar das próprias vivências? É violento enunciar um discurso sobre uma realidade diferente da minha? Como dar a própria opinião sem ofender ou gerar discursos violentos? 


Linda Alcoff (1991) investigou sobre o assunto, mais especificamente sobre a posição do acadêmico e a posição daqueles que falam pelos outros. A autora se pergunta como fica a possibilidade de produzir conhecimento se cada acadêmico só fala de suas próprias experiências de vida? É importante levar em conta que, por exemplo, muitas pesquisas indicam que algumas pessoas trans e travestis não têm acesso aos lugares de produção de conhecimento como universidades, portanto, que outros acadêmicos tenham investigado, escrito e falado sobre o assunto, assim que seja desde um lugar de privilégio, garantiu visibilidade. Em suma, o lugar de fala não impossibilita o discurso, mas visa a reflexão daquele que enuncia esse discurso. É importante construir uma forma de falar sobre as questões sempre partindo do próprio lugar, considerando tudo o que isso implica e tomando o cuidado necessário.  


Porém, neste assunto poderíamos ir além e refletir o que acontece com essas pessoas que não chegam a esses lugares de produção de conhecimentos e lutar por que seja assim, para que elas mesmas possam ser quem teorize sobre suas vivências. No Brasil há muitas pessoas levantando a voz, contando a discriminação e a injustiça vividas dos seus lugares. É interessante ouvir delas mesmas as experiências para entender a realidade que vivem dia a dia. Uma das brasileiras que lutou muito por reivindicar seu lugar de fala e hoje é um símbolo de luta no Brasil é Marielle Franco. Ela foi socióloga, política e militante dos direitos humanos, porém, ela não fez isso de qualquer lugar, seu lugar social era periférico já que era mulher, negra, favelada, mãe solteira, feminista, lésbica. Inclusive ela fazia finca-pé nas suas origens e explicava que daí vinha sua narrativa. Essas características de sua identidade, compartilhadas por muitas outras pessoas faziam com que não tivesse os mesmos direitos que o resto da sociedade e muito menos os privilégios da pequena elite. No entanto, ela não ficou quieta, ela lutou por seus direitos e pelos direitos de sua comunidade e por causa disso é que foi assassinada. 


Quanto ao lugar de fala, também Donna Haraway (1988) pesquisou e teorizou sobre o assunto, explica que o conhecimento sempre é produzido de forma situada. O lugar onde um conhecimento é produzido vai influir na forma em que vai gerar efeitos, em como será recebido. Nesse sentido, o lugar de fala funciona como um índice para que cada um se interrogue. Sendo assim, quem fala desde um lugar de privilégios sociais, deve refletir sobre como suas trajetórias atravessam seus pontos de vista e como seu lugar social transforma a sua forma de perceber o mundo que o rodeia, como também tudo aquilo que não consegue ver desse lugar. 


Neste sentido, considero de muita relevância escutar os sujeitos que vivem as opressões em primeira pessoa, porque há muitas experiências, muitas dores que quem não passou por isso não conhece. É importante dar voz a essas pessoas e escutar o que têm para dizer. Seus discursos devem ser considerados nos debates reivindicando seu lugar de fala. Assim, as possibilidades de escuta devem ser configuradas e reorganizadas para que as pessoas que ocupam esse lugar de fala sejam centrais na construção dos discursos políticos ao redor desses assuntos. 


Patricia Hill Collins (1986) desenvolve a noção do “outsider within” que poderia ser traduzido como “a estrangeira de dentro”. A partir dessa noção ela explica que as mulheres negras desenvolvem uma perspectiva social diferente consolidada da experiência de habitar o mundo como estrangeira. Essas perspectivas não costumam ser ouvidas e são deslegitimadas, porém deveriam ser escutadas e compreendidas por toda pessoa que aspire a falar de suas vivências desde fora. No Brasil houve e há várias autoras falando do assunto, não só a partir das suas próprias experiências, mas também com conhecimentos do campo, isto é, profissionais. Algumas delas são: Marielle Franco, Djamila Ribeiro, Lélia Gonzalez, Conceição Evaristo, Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus, Sueli Carneiro, Bianca Santana e com certeza há muitas mais mulheres levantando sua voz as quais precisam ser escutadas.


Concluindo, devemos antes de nada escutar aqueles que são sujeitos dessas experiências. Se vamos falar de algum assunto, devemos antes compreender os atravessamentos e as influências da minha posição social sobre o próprio discurso. É preciso desenvolver o olhar crítico e atento sobre as formas do discurso. Vemos que o assunto do lugar de fala é bem complexo e precisa ser considerado. 


Agora que você sabe que ao falar de racismo deve antes de nada considerar seu lugar de fala, talvez se esteja perguntando o que você poderia dizer do assunto, ou talvez esteja refletindo sobre o racismo na sua vida. Até é possível que esteja pensando que nem é racista, mas, se você é branco você é racista sim.


Rita Von Hunty (2020) declara que o racismo é coisa de brancos. Assim, é preciso que as pessoas brancas estejam inseridas no debate. Ainda que uma pessoa não se sinta racista, ou considere que não tem atitudes racistas, ou ache que seus atos e sua vida não tem nada a ver com o racismo, essa pessoa se beneficiou de uma estrutura racista. 


Você está se sentindo atacado pelo que falei? Isso aí é a sua fragilidade branca:


Como explica Robin DiAngelo (2018: 54):

Os brancos (...) vivem em uma sociedade profundamente desigual e separada por raça, e os brancos são beneficiados dessa separação e desigualdade. Como resultado, estamos isolados do estresse racial ao mesmo tempo em que nos sentimos no direito e no merecimento de nossa vantagem. Dado que raramente sentimos desconforto racial em uma sociedade que dominamos, socializados em um senso de superioridade profundamente internalizado, não tivemos de construir resistência racial, a qual desconhecemos ou nunca podemos admitir para nós mesmos. Tornamo-nos altamente frágeis em conversas sobre raça, as consideramos um desafio, tanto às nossas visões de mundo raciais como às nossas próprias identidades de pessoas-boas e morais, portanto percebemos qualquer tentativa de nos conectar ao sistema do racismo é uma ofensa moral perturbadora e injusta, a menor quantidade de estresse racial é intolerável, a mera sugestão de que ser branco tem um significado geralmente desencadeia uma série de respostas defensivas que incluem emoções como medo, raiva, culpa e comportamentos como silêncio, a contra-argumentação (“todas as vidas importam”) e afastamento da situação produtora deste estresse, essas respostas trabalham para restabelecer o equilíbrio da branquitude, pois repelem o desafio, desenvolvem nosso conforto racial e mantém nosso domínio dentro de uma hierarquia racial. Conceituei esse processo como “fragilidade branca” desencadeado por desconforto e ansiedade, nascido da superioridade e do sentimento de direito a fragilidade branca não é fraqueza em si, é, de fato, meio poderosa de controle racial branco e de proteção das vantagens brancas.

Por causa disso é possível que se você, como pessoa branca, se sinta atacada quando a caracterizam como racista, mas seria interessante ir além desse sentimento e tentar entender porque ocorre. É preciso que todos reconheçamos como esse sistema de opressão desumanizou a uns enquanto beneficiava a outros, e isso não faz as pessoas brancas culpáveis do racismo, mas sim responsáveis pela luta por um mundo diferente.


Como explica Rita Von Hunty (2020) no seu vídeo “Racismo, coisa de branco”: o primeiro passo para ser antirracista é se educar, procurar saber de que se trata o racismo. É importante considerar que nosso processo de aprendizagem como pessoas brancas não acabará nunca até que não desapareça o modelo de opressão racial. As pessoas brancas somos responsáveis por mudar esse sistema, devemos nos mexer nessa estrutura e lutar pela sua mudança 


Concluindo, é preciso refletir sobre o acesso aos direitos, sobre a possibilidade de alçar a voz, de enunciar o próprio discurso. Devemos reconhecer de onde viemos e que lugar ocupamos na sociedade para saber como está conformado nosso discurso, devemos perceber os aspectos transversais presentes na constituição da nossa fala. Segundo Chauí (2012: 4): 


A  sociedade brasileira está polarizada entre a carência absoluta das camadas populares e o privilégio absoluto das camadas dominantes e dirigentes, o que bloqueia a instituição e consolidação da democracia. 

Portanto, é preciso que isso mude, todos somos responsáveis por lutar para que essa mudança aconteça. 

Falemos de racismo, pesquisemos e escutemos aquelas pessoas que são vítimas da violência racista. Sejamos capazes de reconhecer nossos privilégios na hora de dar uma opinião e sejamos conscientes da grande importância que tem falar de um assunto, já que com isso vamos criando novos significados e novas formas de habitar o mundo. 


Bibliografia:


  • Alcoff, Linda. (1991). The Problem of Speaking for Others [O problema de falar pelos outros]. University of Minnesota Press

  • Carvalho, José Murilo. (2008) Cidadania no Brasil. O longo caminho  Rio de Janeiro. Civilização Brasileira.

  • Chauí, Marilena. (2012). Cultura e democracia Salvador. Secretaria de Cultura do Estado da Bahia.

  • DiAngelo, Robin. (2018). White Fragility: Why It's So Hard for White People to Talk About Racism ¨[“Fragilidade Branca. Porque é tão difícil para os brancos falar sobre racismo  ] USA. Beacon Press. 

  • Haraway, Donna. (1988.   Situated Knowledges: The Science Question in Feminism and the Privilege of Partial Perspective   [  Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial  ] Feminist Studies, Inc. 

  • Hill Collins Patricia (1986)   Learning from the Outsider Within: The Sociological Significance of Black Feminist Thought   [  Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro  ]. Oxford University Press

  • Ribeiro, Djamila, [Canal Curta!]. (21 de dezembro de 2017).   Curta! Livros | O que é lugar de fala?   [Vídeo]. Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=S7VQ03G2Lpw 

  • Silva, T.T. da (2009).    Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais   /Tomaz Tadeu da Silva (org)- Petrópolis, RJ: Vozes.

  • Vieira, Helena. [Pausa Para o Fim do Mundo]. (24 de maio de 2021)   Sobre Lugar de fala   [Vídeo]. Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=t1uyvY0um_U 

  • Von Hunty, Rita, [Tempero Drag]. (19 de junho de 2020).   Racismo, coisa de branco   [Vídeo]. Youtube:  https://www.youtube.com/watch?v=eBfw2WqNDj0 

  • Woodward, K. (2009).   Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual  , /Tomaz Tadeu da Silva (org.),.- Petrópolis, RJ: Vozes.pp.7-72


*Mariana Cuello é Professora de Português, formada pela "ENS en Lenguas Vivas "Sofía B. de Spangenberg". O texto publicado corresponde ao trabalho final desenvolvido na disciplina Cultura dos Povos de Fala Portuguesa II, durante o percurso de sua carreita.



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