Alzira Probo - Licenciada em História (UFP) e Professora em PLE (ENS LV "Sofía Spangenberg”)-, é brasileira e reside na Argentina há mais de 30 anos. Neste artigo ela nos conta como foi sua experiência estudando sua língua materna, o português, de um ponto de vista diferente: como língua estrangeira.
Uma doce armadilha
Alzira Probo
"As palavras só têm sentido se nos ajudam a ver melhor o mundo. Aprendemos palavras para melhorar os olhos”
Rubem Alves*
Em 1980, decidi estudar Licenciatura em História porque desejava compreender a evolução do povo brasileiro, e apoiar aos movimentos que lutavam contra o regime militar instalado no Brasil desde 1964. Pensava fazer algo através da docência ou no campo da pesquisa.
A democracia chegou em 1983, priorizei novas reivindicações, e embarquei para a Argentina onde formei minha família como tantas correligionárias. Estas mudanças me levaram a repensar a vida profissional e fazer uma nova carreira: o curso de formação de professores de português. Assim, em 2010, ingressei na ENS Sofia Spangenberg com a firme intenção de exercer a docência para “ensinar meu idioma e divulgar a cultura do meu país”. Nem por um segundoimaginei que essa decisão me conduzia a uma doce armadilha.
A preparação para a docência de Português como Língua Estrangeira (PLE) foi uma experiência renovadora em todos os sentidos. Apesar de que não me propus, originalmente, em várias ocasiões deixei a condição de aluna para inserir-me a este mesmo espaço como uma observadora das dúvidas, dos desafios e das perspectivas dos meus colegas hispanofalantes, e mais ainda, para compreender as estratégias usadas pelos professores, na sua maioria argentinos, ao explicar algo que para um brasileiro é natural.
Pensei que seria um processo muito simples e fácil. No entanto, constituiu-se em uma aprendizagem que superou minhas expectativas como estudante, transformou-me pessoalmente e foi um verdadeiro campo de observação para minha profissão já que podia ver nas dificuldades dos colegas e nas estratégias dos professores meu futuro campo de ação. Lembro-me perplexa, mais de uma vez nas primeiras aulas, frente as dúvidas dos colegas argentinos sobre o “e” e o “o” aberto ou fechado, as dificuldades dos processos de nasalização, sonorização e etc.; Também, recordo a inconformidade com as regras de fonética que entravam em choque com a variação linguística representada nas salas de aulas por mim e algumas colegas brasileiras. E que dizer da colocação pronominal? Estrutura gramatical tão distante da língua falada pelo brasileiro. Estava desvendando minha própria língua, num verdadeiro laboratório de emoções que me levou a resignificar o Português. Essa mania de falar tão diferente da escrita, que produz tanta dor de cabeça aos brasileiros e mais ainda aos estrangeiros, neste âmbito reflexivo me fez criar novos sentidos em vários aspectos junto aos meus colegas e professores.
No marco teórico da História e da Cultura fui reassumindo este idioma também como resultado de uma construção política-cultural e socioeconômica. Refleti como poderia haver sido diferente. Que em lugar de Português, hoje, poderíamos falar a Língua Geral, o Guarani, algum dos dialetos de uma das tantas nações africanas, por exemplo o Iorubá dos Malês, ou - porque não, crioulo como em outras nações.
Revisei conceitos estruturados desde minha infância, com momentos de profunda angústia ao ver como nos foi imposta a língua, a cultura, a religião como ao assistir o filme: “A missão”. Deixei atrás o orgulho pela língua com o que ingressei ao Professorado e descobri novas razões para compreender minha identidade. Aprendi a escutar a análise da Historia Brasileira feita por terceiros, e nessas circunstâncias, aprendi a ver o idioma como uma expressão estrangeira ao território, atualmente, chamado Brasil.
Ao compartilhar biografias escolares, em uma das Oficinas de práticas pedagógicas, observei que muitos dos meus colegas argentinos estudaram os ciclos anteriores em plena Ditadura Militar. Comparei os processos vividos aqui e lá; os destinos atravessados, uma vez mais, pelas potências estrangeiras e as consequências nas práticas escolares. Refleti sobre que tipo de escola queria trabalhar, que abordagem queria exercer como futura professora de PLE, e que a bancarização é autoritária e antidemocrática. E estes também foram momentos de profunda significatividade para minha formação profissional.
Experimentei a educação como uma ponte para minha transformação pessoal. Reciclei, lentamente, minhas antigas intenções revolucionárias. E só então percebi que tinha sido vítima de uma doce armadilha da vida. Ao decidir fazer esta carreira para “ensinar minha língua e cultura”, jamais imaginei que me esperava também participar de um processo que implicou aprender a sentir, a ouvir, a escutar, a olhar, toda minha história de forma distinta. Ainda há muito para aprender, e mais ainda por construir. Contudo estudar foi uma decisão da que não só não me arrependo, como também tem sido motivo de crescimento, ressignificação e novos compromissos em minha vida.
*Alves, Rubem. Ostra Feliz não faz pérola. São Paulo. Editora Planeta do Brasil. 2008. p. 105.