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Maria Castro Azevedo e Mariel Tronca

Do livro à televisão: Relatos de uma experiência didática com o romance “Uólace e João Victor”


O presente artigo tem o intuito de compartilhar um projeto realizado com estudantes de PLE (nível B2) empregando o romance “Uólace e João Victor” de Rosa Amanda Strausz e o seriado “Cidade dos Homens” -baseado no mesmo livro- para a abordagem da compreensão e produção de textos em língua portuguesa.

 

Do livro à televisão: Relatos de uma experiência didática com o romance “Uólace e João Victor”.

Maria Castro Azevedo e Mariel Tronca


O presente artigo tem o intuito de compartilhar com os leitores da Revista o percurso teórico, a proposta metodológica e algumas considerações surgidas no contexto educativo do Curso de Formação de Professores de Português de Ensino Médio e Superior na Oficina de Redação Acadêmica da Escola Normal de Lenguas Vivas Sofía B. de Spangerberg, do GCBA.


O nome do nosso projeto é: “A interface entre texto escrito e texto oral do livro Uólace e João Victor”, da autora Rosa Amanda Strausz, o qual consiste na descrição de uma aula de PLE no contexto de um instituto particular situado na cidade de San Antonio de Padua, na Grande Buenos Aires, para uma turma de 10 (dez) alunos que cursam o segundo nível de português B2, que corresponde ao Marco Comum Europeu de Referência para línguas. A faixa etária da turma é heterogênea (de 14 a 31 anos). A duração deste trabalho foi de três meses, as abordagens utilizadas foram: abordagem comunicativa e interação social. Além do livro assistimos um episódio da primeira temporada da série “Cidade dos Homens”, exibido pela Rede TV Globo no ano 2002, intitulado “Uólace e João Vitor”, baseada no livro homônimo, que é um material que representa a história do mesmo, integrando o estímulo visual ao auditivo.


Para o desenho de nossas aulas consideramos diversos fatores, tais como: público alvo, escolha de materiais que sejam autênticos, enriquecedores e significativos (Ausubel, 1978), que objetivos almejamos alcançar e que abordagem se adéqua melhor à turma. Esta planificação inicial teórica, não é estática, provavelmente durante o desenvolvimento das aulas seja preciso fazer algumas mudanças devido à influência da interação e relação professor / aluno / material, gerando um feedback que vai nortear o professor a fazer os ajustes necessários em base a sua experiência e vivência.


É preciso que o docente reflita sobre o ensino-aprendizagem, tenha consciência das diversas abordagens ou métodos teóricos, sabendo aproveitar o melhor de cada um e que também tenha na devida conta que ele deverá ser o encarregado de assumir o papel de orientador, mantendo um ambiente agradável, estimulando a participação, intercâmbio de opiniões e trabalho em grupo. Sobre este tipo de abordagem podemos citar às autoras Rosana Lopes Messias e Mariângela Braga Norte que dizem:


O ensino comunicativo de LE é aquele que organiza as experiências de aprender em termos de atividades/tarefas de real interesse e/ou necessidade do aluno para que ele se capacite a usar a língua alvo para realizar ações de verdade na interação com outros falantes-usuários dessa língua (ALMEIDA FILHO, 1993, citado por MESSIAS e BRAGA NORTE, 2013, pág. 11).


Nosso objetivo principal foi nos focar na leitura como forma de desenvolver a compreensão e a fala, aplicando os pressupostos da “Teoria atos da fala” do filósofo britânico John Austin (1955), que afirma que dizer é transmitir informações, mas é também uma forma de agir sobre o interlocutor e sobre o mundo circundante. Através do texto escrito e do oral acreditamos que se pode conseguir que o aluno seja capaz de desenvolver com mais facilidade e no tempo esperado a competência da fala. Mas para isso tivemos que passar por várias fases.


Sequência Didática

  1. Ler a novela.

  2. Questionário (compreensão do texto).

  3. Assistir o episódio da minissérie homônima.

  4. Debate de forma grupal e individual.

  5. Elaborar quadro comparativo de semelhanças e diferenças dos dois personagens principais.

  6. Comentar que coisas apareceram na novela que não apareceram na minissérie e vice-versa.

  7. Elaboração do resumo.

  8. Responder perguntas com respostas pessoais.

  9. Transformar a narrativa em diálogos.

  10. O livro está dividido em 12 partes e cada parte da história foi resumida em forma de desenho.

  11. Gravaram os diálogos onde interpretaram os personagens principais e secundários.


Primeiramente, o texto foi lido pela professora em conjunto com os alunos que alternaram com ela as tomadas de turno na leitura, desta forma começou-se por trabalhar a fonética e a entonação da língua. A compreensão do texto foi trabalhada a partir de perguntas retiradas do próprio livro. Depois de fazer uma primeira leitura do texto, assistiram ao vídeo da série para em seguida fazer uma atividade na qual tiveram que elaborar um quadro comparativo de semelhanças e diferenças entre os dois personagens principais Uólace e João Victor.


Para realizar essas atividades o aprendiz deverá processar toda essa informação que lhe foi apresentada em forma de texto e audiovisual, que segundo a teoria do linguista holandês Teun Van Dijk, o aluno inicialmente deve interpretar globalmente o tema do texto e assim poder extrair as ideias e conceitos mais importantes, filtrando as informações não importantes, na maneira de elaborar um resumo que mantenha o sentido do texto original, esta reconstrução abstrata se chama macroestrutura e para elaborá-la o educando vai utilizar as macroregras linguísticas de compreensão e produção, que são:


Macroregras de compreensão: “são aquelas que permitem elaborar a macroestrutura de um texto escrito, tirando do mesmo as informações mais importantes”. (VAN DIJK, citado por AUGUSTO, 2012, pág. 3).


Macroregras de produção: São aquelas que permitem desenvolver uma macroestrutura memorizada para construir um texto novo. Que seria o caso de fazer uma pergunta onde sua devida resposta seja pessoal, a qual permitirá ao aluno construir um novo texto. (VAN DIJK, citado por AUGUSTO, 2012, pág. 3).


Depois de os alunos dominarem o vocabulário e compreenderem bem a trama da série, veio o desafio de transformar a narrativa em diálogo. Esta etapa envolveu a produção de resenha crítica que é uma atividade que aprimora a redação de textos e o enriquecimento de vocabulário, além de promover o desenvolvimento do pensamento crítico e uma análise textual mais apurada. O texto está dividido em doze partes e os alunos fizeram uma atividade em que a história foi resumida em forma de desenhos, e finalmente gravaram os diálogos onde interpretaram os personagens principais e secundários. Nesta fase o professor tentou garantir o sentido do texto, criando o contexto da leitura, que segundo Souchon:


A leitura é uma atividade social marcada histórica e culturalmente e que a relação desses indivíduos com essa leitura seja uma relação pessoal e cultural ao mesmo tempo. (SOUCHON, 1997, 17, citado por PASQUALE et al., 2004, pág. 24). [Tradução nossa].


A exibição da série na L2 sem legendas e com falantes nativos apresentadas aos alunos possibilitava não só que eles apreciassem o contexto sociocultural e histórico dos protagonistas, mas também a pronúncia correta, o que foi um eficaz recurso de aprendizagem. Esta abordagem a partir de textos contextualizados é importante porque o aluno deixa a gramática relegada para segundo plano e aprende por imitação pensando na L1, e não traduzindo. Com relação a este tema podemos nos referir ao linguista norte-americano Stephen Krashen[1], que assegura que as pessoas devem aprender uma língua estrangeira da mesma forma que as crianças aprendem a falar desde que nascem, isto é, de forma natural.


Queremos deixar em claro que esta sequência didática funcionou no caso do idioma português, por ser uma língua transparente com o espanhol.


A história do livro escolhido transcorre na cidade do Rio de Janeiro, os protagonistas são dois garotos que possuem realidades de vida bem distintas, o primeiro Uólace vive na realidade da favela carioca, convivendo com a fome, carência de contenção familiar, falta de oportunidade para escolarizar-se, é sofredor do preconceito do racismo, arraigado na sociedade que tende a criminalizar a pobreza. Já o segundo João Victor pertence à classe média, mora no centro da cidade, estuda em uma escola particular e tem as necessidades básicas para sua sobrevivência, como contenção familiar, alimentação e vestuário sendo atendidas. A pesar de esses garotos pertencerem a mundos divergentes, suas histórias se entrelaçam por terem sonhos em comum, próprios de todo adolescente, tais como o desejo de comer hambúrguer de lanchonete e de ter o tênis de grife, que encarna o ideário consumista que alcança diversas classes sociais e despertam o desejo pelas mesmas coisas. Portanto, a leitura deste livro está relacionada com o mundo real do aluno, a qual resulta uma aprendizagem significativa (Ausubel, 1978).


Em relação a estes desejos em comum, vemos abaixo quatro fragmentos do livro “Uólace e João Victor” da autora Rosa Amanda Strausz que dizem:


João Victor:- Café com leite e pão com manteiga?[…]

- Eu queria um hambúrguer com batata frita. - Hambúrguer?

- Espanta-se minha mãe. - Era só o que faltava. Não alimenta nada e faz mal. (STRAUSZ, 2003, pág. 12).


Uólace:- Café com leite e pão com manteiga? - Desanimo. O homem já está

com a mão no bolso. Pára e me olha, meio invocado.

- O que é que tem de errado com isso? Não estou pagando um lanche para você?- Mas não dava para ser um hambúrguer?

- Dava nada! Hambúrguer é muito caro. Além disso, não é bom para a saúde. (Ibidem, pág. 13).


João Victor: - Por culpa do ”H” tirei 5 (cinco) na prova. Minha mãe vai me matar. Zé Luís e Lucas também entraram pelo cano. Saímos os três pela calçada, xingando o ”H” e olhando as vitrines. De repente, uma aparição. O tênis mais deslumbrante já fabricado no mundo reluz na vitrine da sapataria. Parece até que tem imã. Eu, Zé Luís e Lucas, grudamos o nariz no vidro. (Ibidem, pág. 18).


Uólace: - Deve ter alguma coisa muito interessante naquela vitrine. Vamos ver o que é. [...] Cachorrão Duplex já acorda anta. E quando resolve atacar, é mais anta ainda. [...] Agora mesmo está vidrado no tênis do filhinho-de-papai mais gordo e besta. [...] Vamos entrar pelo cano se tentar ganhar o tênis na marra. Catuco Cachorrão Duplex: Vambora, acho que tá sujando. Nessa hora, a bola-de-banha do papai faz uma cara de quem não têm medo de nada, de quem pode comprar o mundo com cheque e diz que vai comprar o tênis amanhã. (Ibidem, pág.24, 26, 31).


Salientamos também que para trabalhar este tema adotamos uma abordagem dinâmica sobre o ensino de PLE, além de nos basear em vários teóricos importantes e em nossa própria experiência como professoras, tanto nas escolas de ensino médio, nos terciários como nos cursos de idioma.


Aplicamos o conceito da Competência Comunicativa, proposta pelo sócio linguista americano Dell Hymes (1979), a importância deste conceito foi ressaltada pelas professoras K. D. Maciel e I. Hartl da UFRJ no seguinte trecho:


O conceito de competência comunicativa de Hymes (1979) vai nortear a visão funcional de ensino/aprendizagem. A língua serve para expressar funções, tais como, informar, pedir, cumprimentar entre outras. A competência comunicativa pressupõe competências, tais como: linguística, estratégica, discursiva e sociolinguística. A visão destes teóricos incluindo-se, aí também Wilkins (1979) e contribuições da pragmática – atos de fala (Austin, 1990) dá origem à abordagem comunicativa no ensino de línguas; a forma está em segundo plano, o foco está no uso, na comunicação. O conteúdo programático visa funções e noções.

A visão mais recente no ensino/aprendizagem de línguas é a interacional. A língua, os enunciados, que são sempre dialógicos, constroem as relações pessoais e as identidades sociais. Esta visão incorpora a funcionalidade, mas dá um passo bem adiante, pois acredita que o conhecimento seja construído na interação social. Daí a ênfase aos procedimentos, à relação estabelecida entre professor, aluno e materiais. Acreditamos que alguns métodos comunicativos mais recentes de alguma forma incorporam esta noção de dialogismo, da construção do conhecimento através das enunciações dialógicas (Bakhtin, 1992). (D. MACIEL e HARTL, 2003, pág. 2).


É necessário frisar também que leitura é cultura e para a transmissão da mesma, não se trata apenas de contar histórias, escutá-las e logo repeti-las mecanicamente, senão que a mesma consiste em que o ouvinte possa enriquecê-la perante a contribuição que vai estabelecer pelos vínculos criados neste processo, sendo então que é a própria história contada a que cria as relações interpessoais e esse foi um dos nossos objetivos neste projeto, que era além de fazer com que o aluno desenvolvesse a fala através de textos, que ele também pudesse relacioná-lo com suas experiências de vida. (Ausubel, 1978).


Para concluir, a ideia fundamental deste artigo sobre o ensino de PLE para aprendizes do nível B2, que já contam com um conhecimento prévio, é ressaltar que pudemos aplicar uma abordagem contextualizada e comunicativa. Um fator importante foi apresentar o material (o livro) de maneira que os alunos tivessem um primeiro contato de forma escrita, começando a fase da leitura em conjunto com a professora e a compreensão do mesmo em contexto. Esta etapa de compreensão gerou múltiplas interpretações individuais, as quais foram debatidas entre todos, criando uma interação que enriqueceu o desenvolvimento da fala que afiançou o grupo e também encorajou aqueles alunos mais tímidos a participarem e a se soltarem mais. Depois de terminar de ler o livro tiraram as dúvidas sobre o vocabulário, para finalmente assistir ao vídeo da série como reforço e para completar a compreensão do texto e assim puderam ter uma visão do contexto sociocultural e histórico e também melhoraram a pronúncia. Nesta segunda fase trabalharam as atividades que têm a ver com as macroproduções, já que as atividades de macrocompreensão foram trabalhadas quando leram o livro.


Logicamente o ensino de LE não é uma ciência exata, para isto o professor deverá adaptar estes conceitos segundo o nível, contexto social e cultural da turma. Os materiais trabalhados foram pensados com o intuito de que os alunos pudessem relacioná-los com seu contexto social ou experiências vivenciadas. A escolha de trabalhar o livro de “Uólace e João Victor” e a exibição da minissérie homônima foi justamente para este fim, ou seja, apresentá-los a história que relata a vida de dois personagens reais, que vivem na atualidade de uma grande cidade, suas classes sociais são totalmente opostas, embora tenham desejos e sonhos em comum, como todos os jovens inseridos na cultura ocidental consumista, independentemente da classe social que possuam. Esta forma de ver as coisas como elas realmente são, através de um material autêntico e não adaptado, produziu um input significativo e atraiu o interesse do aprendiz, facilitando o ensino / aprendizagem, pois o mesmo estava relacionado ao seu entorno.


Em relação aos métodos utilizados, nós aplicamos aqueles que mais se adaptaram à turma, usamos a abordagem comunicativa e a interação social, e também nos baseamos em vários teóricos nomeados para realizar nossa planificação. Sempre mantendo como foco principal no aluno e na sua aprendizagem.

 

Referência bibliográfica


AUSTIN, John L., How to do Things with words, New York: Oxford University Press, 1965.

SOUCHON, M., La lecture-compréhension de textes: aspects théoriques et didactiques, in Revue de la SAPFESU Número Especial, Bs.As, 1997, citado por PASQUALE et al., Leer en lengua extranjera: estrategias lectoras y situaciones de lectura, 2004).

STRAUSZ, Rosa Amanda, Uólace e João Victor, Editora: OBJETIVA, Edição: 1, São Paulo, 2003.

Documento disponível em meio eletrônico

AUGUSTO, CESAR, Teoria de Van Dijk, 28 de maio de 2012, disponível em:

<http://pt.slideshare.net/cesarahdz/exposicion-canchola>

Data de consulta: 18/09/15, 8:20 horas.

BLOG no WordPress.com, disponível em:

<https://rosaamandastrausz.wordpress.com/about/uolace-e-joao-victor/>

Data de consulta: 30/10/15, 18:30 horas.

LOPES MESSIAS, Rosana; BRAGA NORTE, Mariângela; et al., Língua Inglesa Coleção

temas de formação volume 4, UNESP - UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA, disponível em:

<http://www.acervodigital.unesp.br/bitstream/unesp/179739/3/unesp-nead-redefor_ebook_coltemasform_linguainglesa_v4_audiodesc_20141113.pdf>

Data de consulta: 30/10/15, 14:30 horas.

KRASHEN, D. Stephen, Principles and Practice in second language acquisition, University

of Southern California (Internet Edition), 2009.

disponível em:

<http://www.sdkrashen.com/content/books/principles_and_practice.pdf>

Data de consulta: 19/06/16, 14:30 horas.

MACIEL, Katharine Dunham; HARTL, Ingeborg, MÉTODOS E ABORDAGENS DE ENSINO DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS E PROCESSOS DE ENSINO / APRENDIZAGEM - (UFRJ) FD7 (2003), disponível em: <www.apario.com.br/forumdeutsch/revistas/.../ForumDeutschtodos.pdf>

Data de acesso: 25/09/15, 15:37 horas.

SITE YouTube.br, vídeo da série “Uólace e João Victor”, disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=8YKODqXtHBk>

Data de consulta: 10/09/15, 15:00 horas.

SITE da Resenha do livro disponível em:

<http://informalrj.blogspot.com.ar/2010/10/resenha-do-episodio-uolace-e-joao.html>

Data de consulta:24/05/16, 15:37 horas.

[1] KRASHEN, D. Stephen, Principles and Practice in second language acquisition, University

of Southern California (Internet Edition), 2009, pág.10.

 

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