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A ilusão das relações raciais e as teorias raciais do século XIX

O presente trabalho tem como objetivo analisar o tópico da ilusão das relações raciais e trazer à luz uma das questões fundadoras da problemática do racismo no Brasil: as teorias raciais. Trata-se do trabalho final da disciplina “Cultura dos Povos de Fala Portuguesa I” e, a fim de levar a cabo sua produção, respeitando a proposta de integração de conceitos, relaciona-se o capítulo “A ilusão das relações raciais” (DAMATTA, 1986) com outros referenciais teóricos que trazem consigo uma abordagem que oferece ao leitor um olhar mais profundo acerca da referida questão, como Laraia (1986), Santos (2018), Albuquerque e Fraga Filho (2006) e Schwarcz (2019).


O ensaio acadêmico busca visibilizar a origem da temática da falsa ilusão de uma sociedade brasileira livre de racismo, mas que traz em suas entranhas as práticas veladas de preconceito racial, que acarretam - ainda - duras consequências para a população afro-brasileira.


Palavras-chave: Racismo. Teorias Raciais. Afro-brasileiros.

 

A ilusão das relações raciais e as teorias raciais do século XIX: consequências desse paradigma na atualidade

Por Denize de Souza Rodrigues


Introdução

A realização da análise sobre a ilusão das relações raciais no Brasil permite evidenciar o processo de formação de uma sociedade que apresenta um tipo de racismo extremamente peculiar. O discurso de um país democraticamente racial cai por terra quando se observa a presença de cada uma das variantes étnicas nas esferas da sociedade brasileira.


Diversos são os fatores que engendraram - e ainda o fazem - a problemática racial no país, que atualmente se encontra coberta sob o manto da igualdade étnica: desde as teorias raciais à questão do colorismo (mulatismo), passando pelo processo de miscigenação e as políticas de embranquecimento. Esses são os elementos fundadores do formato de racismo existente no território brasileiro.


1- As teorias raciais do século XIX: a origem da legitimização da ideia da supremacia branca no Brasil

Consideradas como o pilar de sustentação da validação do conceito de raças superiores, as teorias raciais, também classificadas como “Darwinismo Racial” são as responsáveis por elaborar justificativas de cunho científico a fim de estabelecer, em meados do século XIX, a idealização de uma pirâmide racial, em que o homem branco estaria no topo, como um ser humano sublime, e os negros, por sua vez, ocupariam a base, por se tratarem de uma espécie “menos evoluída”. A difusão de tais hipóteses não somente legalizou e naturalizou o racismo, mas também autenticou o dever que os “povos mais civilizados” - leia-se os europeus - tinham de oferecer às “culturas inferiores” um acesso ao desenvolvimento e ao progresso, levando-os aos estágios superiores de civilização por meio da ocupação, dominação e exploração de seus corpos e riquezas.


Durante todo o período que abrange o século XIX e início do século XX, diversas teorias raciais buscavam o estabelecimento de argumentos que sustentassem a ideia da superioridade branca, com destaque para o criminalista e pensador italiano Cesare Lombroso. Opondo-se ao ideal liberalista da igualdade geral, foi o criador da Antropologia Criminal, que consistia em condenar um possível suspeito de um crime baseando-se em seus traços físicos, considerados por ele como indicadores de um “criminoso nato”, motivando, desta forma, os ideais eugenistas.


No Brasil, o panorama racial se manifestava de maneira peculiar nesse período. Para intelectuais como o francês Conde de Gobineau, pior que as raças puras era a mestiçagem, uma vez que essa aglutinava as características das “duas espécies”, anulando o melhor dos dois lados (apud DAMATTA, 1986). De acordo com suas expectativas, o país levaria menos de dois séculos para perder a sua identidade como povo, devido à mistura racial desenfreada que ocorria em território brasileiro. Não obstante, a necessidade do “branqueamento” da sociedade fez com que fossem instaladas políticas que concedessem ao país uma futura população branca por meio da união de negros e mestiços com imigrantes europeus recém-chegados (SCHWARCZ, 2019), dando origem ao processo de embranquecimento do povo brasileiro, que seria alcançado por meio da tão condenada miscigenação.


2- A miscigenação entre o negro e o branco no Brasil

O processo de miscigenação entre negros e brancos no território brasileiro teve seu início ainda no período escravocrata. Entre os milhares de africanos que foram trazidos à força para serem explorados como mão de obra escrava, estavam inúmeras mulheres que tiveram seus corpos invadidos em nome da tirania de seus senhores ou até mesmo de feitores, dando vida a bebês mestiços, que eram cruelmente denominados como “mulatos”, vocábulo originado do termo mulo, animal fruto do cruzamento de um asno macho com uma égua, sendo, portanto, resultante da mistura de duas espécies diferentes. Tais crianças, bastardas por terem sido concebidas de forma extraconjugal, muitas vezes recebiam algum privilégio por parte de seu progenitor, como a oportunidade de trabalhar na casa grande e até mesmo a aprendizagem de ofício, no caso daqueles escravizados que serviam nas áreas urbanas. Aquele afrodescendente, fruto da miscigenação, ostentava uma pele mais clara, que lhe conferia certos benefícios que os demais não teriam acesso (ALBUQUERQUE, 2006).


Após a abolição da escravatura, com o intuito de erradicar a herança afro no Brasil, instalou-se políticas de embranquecimento da população, encabeçadas pelo antropólogo João Baptista de Lacerda. Segundo Schwarcz (2019), o objetivo do governo era tornar branco em apenas um século um país que conviveu por mais de trezentos anos com o regime de escravização de africanos, através do não oferecimento de condições de vida adequadas aos afro-brasileiros e do incentivo à imigração de milhões de europeus.


O processo de miscigenação ainda traz diversos debates à luz na atualidade. O que antes era adotado como um plano oficial para “melhorar a qualidade” do povo brasileiro, tornando-o cada vez mais próximo do ideal europeu, hoje se faz presente mediante considerações como o conceito da necessidade de pertencimento a um determinado círculo e o status social que um cônjuge de pele branca pode oferecer - sobretudo ao homem negro (SANTOS, 2018).


3- O conceito do colorismo no brasil: as vantagens de ser “mulato”

“O Brasil é um inferno para os negros, um purgatório para os brancos e um paraíso para os mulatos”. A célebre frase do jesuíta André João Antonil (apud DAMATTA, 1986) ainda que represente uma enorme contradição no que se refere à realidade dos afro-brasileiros, serviria para salientar a diferença marcante entre aqueles que apresentam um aspecto mais retinto e os que trazem consigo traços que os aproximam da branquitude. Segundo DaMatta (1986, p.28):


Se o mulato é um ser intermediário e ambíguo, uma espécie de Dona Flor das relações raciais brasileiras, categoria que existe de fato e de direito na ideologia social da sociedade e se legitima precisamente por instituir o intermediário e a síntese dos opostos como algo positivo, sua associação com o Paraíso nos ajuda a entender a genial sensibilidade de Antonil para os valores mais profundos da nossa sociedade. Porque não há dúvida alguma de que ele percebeu o valor positivo que associamos ao intermediário, a categoria que fica no meio, ao ser situado entre os extremos e que, por isso mesmo, permite a sua associação e a negação de suas tendências e características antagônicas.


O Brasil possui a peculiariedade de ter criado uma classificação “alternativa”, que denota a seus pertencentes uma posição intermediária, diferentemente do que ocorre no hemisfério norte, onde é inexistente a figura do mestiço ou mulato e a marcação entre o negro e o branco é bem notável. Não é possível encontrar na Europa ou nos Estados Unidos a presença de um meio termo. Aquele que apresenta ascendência africana, ainda que possua minimamente algum traço negróide, é considerado negro. Já em terras Brasilis, os frutos da miscigenação vivem em um impasse: não possuem os privilégios brancos e tampouco carregam todo o peso da negritude. Socialmente, usufruem de certas facilidades por não serem “tão negros” aos olhos da sociedade brasileira, que rechaça tudo aquilo que foge aos padrões pré-estabelecidos (branco, europeu), mas jamais serão completamente aceitos em seu seio.


Atualmente, existem movimentos que buscam levar adiante a conscientização acerca da necessidade da unificação do movimento negro, que deve ir além do Colorismo[5]. Autoperceber-se como negro seria o primeiro passo para a resolução da problemática do afrodescendente classificado como “mulato”.


4- A resistência negra em um país dissimuladamente racista

Desde o princípio da história negra no Brasil, com a chegada dos primeiros grupos de africanos escravizados, fez-se presente a resistência negra perante a cruel investida dos brancos que, além de explorar seus corpos incansavelmente, buscavam anular sua essência como povo, mediante a proibição de suas práticas religiosas, a catequização e a imposição de um novo sistema linguístico. Sem embargo, mantiveram-se vivos muitos dos costumes milenares da cultura africana, cultivados nas rodas de capoeira, na gastronomia e no culto aos orixás.


Durante todo o período escravocrata houve fugas, a formação de quilombos e revoltas contra os senhores escravagistas, muitas dessas carregadas de violência como resposta àquela sofrida durante anos pelos escravizados e seus ancestrais. Segundo Albuquerque e Fraga Filho (2006, p.117), a “desobediência sistemática, a lentidão na execução das tarefas, a sabotagem da produção e as fugas individuais ou coletivas foram algumas delas”, uma vez que “(...) fugir sempre fazia parte dos planos dos escravos.”


Atualmente, passados 133 anos da abolição da escravatura, os afro-brasileiros se encontram inseridos em um contexto de racismo velado, fantasiado de democracia racial. Esta se apresenta sob o discurso de que no país “vivemos numa sociedade sem raças e, portanto, numa sociedade sem racismo” o que acarretaria o fato de que “as únicas desigualdades existentes no Brasil seriam as desigualdades sociais (...)” (CORBO, 2021). Não obstante, a ideia de harmonia étnica vendida como o rosto da nação brasileira não condiz com a realidade da população, que denuncia uma forte hierarquização racial, dando vida - ainda - à pirâmide de Gobineau. O país, que não possui um sistema que explicita as práticas racistas, desenvolveu formas específicas para manifestá-lo, como a impossibilitação da inserção dos negros recém-libertos em condição de igualdade, como cidadãos de direito, quando a mesma oportunidade era oferecida a imigrantes europeus que se encontravam na mesma situação de pobreza e, por isso, escaparam de seus países de origem. Segundo Corbo (2021), a ausência de possibilidades de ascensão aos libertos no pós-abolição desencadeou toda a problemática que se vivencia nos dias atuais. Desta forma, torna-se injusto o pensamento de que negros e brancos concorrem nas mais diversas áreas da vida saindo do mesmo de partida.


Cabe aos afro-brasileiros resistirem diariamente em um país onde são maioria populacional e na fila da pobreza. Políticas de ações afirmativas vêm sendo adotadas nos últimos 12 anos com o intuito de equiparar a condição social dos negros em relação aos demais, como uma

uma forma de compensação ou reparação à discriminação sofrida no passado, evitando que o passado se reproduza interminavelmente no presente e se projete para o futuro (ALBUQUERQUE & FRAGA FILHO, 2006).


O sistema de cotas para afrodescendentes nas universidades, por exemplo, tem possibilitado sua presença e formação acadêmica, permitindo-lhes a visualização de novo horizonte.

Conclusão

As análises aqui apresentadas proporcionam o reconhecimento do Brasil como um país que traz o racismo em sua estrutura, ainda que exista uma incessante busca por fazê-lo implicitamente. Esse traço da nossa história condena severamente o afro-brasileiro à permanência em um lugar secundário, à margem das possibilidades de crescimento e do gozo de direitos que deveriam ser acessíveis para todos os filhos deste solo.


Desse modo, é extremamente importante a ampliação das ações afirmativas já existentes e a adoção de novas medidas, como o sistema de cotas no âmbito do mercado de trabalho e na academia, o que possibilitará a inserção de profissionais negros em todas as esferas da sociedade. Encontra-se uma grande relevância nesse aspecto, uma vez que além das pessoas que serão favorecidas com tais oportunidades, o reconhecimento por parte de crianças afrodescentes que se enxergam em seus pares lhes permitem a certeza de que poderão chegar até onde desejarem, sem o enfrentamento de empecilhos de origem racial.

 

Referências bibliográficas


DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil?, Rio de Janeiro, Ed. Rocco Ltda, 2001.


LARAIA, Roque de Barros, Cultura, Um Conceito Antropológico, 14°ed., Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editora, 2001.


ALBUQUERQUE, Wlamyra; FRAGA FILHO, Walter. Uma história do negro no Brasil. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais; Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006.


SANTOS, Wellington Oliveira dos. Corra!. Homem negro e relações inter-raciais na diáspora. In: COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros, X., Uberlândia, 2018.


SCHWARCZ, Lilia. Teorias do branqueamento no passado e no presente. YouTube. 2019. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=RS7OGC8fZBo&t=96s>. Acesso em: 24/10/21.


WALKER, Alice. If the Present Looks Like the Past, What Does the Future Look Like?.1ª ed., New York, Heresies Collective, 1982.


CORBO, Wallace. In: Casa do Saber. O mito da democracia racial. YouTube. 2021. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=NXN_nCXRn_g>. Acesso em: 25/10/21.

 

[1] LARAIA, Roque de Barros, Cultura, Um Conceito Antropológico, 14°ed., Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editora, 2001. [2] SANTOS, Wellington Oliveira dos. Corra!. Homem negro e relações inter-raciais na diáspora. In: COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros, X., Uberlândia, 2018. [3] ALBUQUERQUE, Wlamyra; FRAGA FILHO, Walter. Uma história do negro no Brasil. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais; Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006. [4] SCHWARCZ, Lilia. Teorias do branqueamento no passado e no presente. YouTube. 2019. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=RS7OGC8fZBo&t=96s>. Acesso em: 24/10/21. [5] Termo criado pela escritora norte-americana Alice Walker (1982) em sua obra If the Present Looks Like the Past, What Does the Future Look Like?” (“Se o presente se parece com o passado, como será o futuro?”) para definir a questão dos “privilégios” que um afrodescendente tem acesso de acordo com sua tonalidade de pele: quanto mais claro for, menos preconceito sofrerá.

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