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  • Dámaris Castillo

A abordagem e as leis argentinas sobre inclusão em sala de aula

No contexto da sua formação no curso de formação de professores de português no ENS en Lenguas Vivas Sofia B de Spangenberg, Dámaris Castilho, estudante do 3eiro ano do curso e em ocasião de frequentar Didáctica Específica 2, acompanhada pela professora Vero Álvarez nos oferece no presente artigo, desenvolvido como trabalho final da disciplina, uma comparativa crítica e apurada das leis argentinas sobre inclusão em sala de aula fazendo um percurso histórico que permite observar as divergências e convergências que levaram à atual lei de ESI.

 

Encontros e desencontros entre a abordagem e as leis argentinas sobre inclusão em sala de aula

Por Dámaris Castillo


Introdução

Com certeza, o começo da primeira década do presente século está (e estará) fortemente marcada pela aparição de novas leis que, em parte, conformavam uma dívida do Estado nacional. O artigo 75, inciso 22, da nossa Constituição Nacional (a Lei Fundamental) adicionou no ano 1994 a partir da reforma constitucional um novo marco regulatório pelo qual muitos instrumentos internacionais passaram a ter igual nível hierárquico do que a CN.


Isto significou que, desde esse momento, os juízes ao exercerem o controle difuso na aplicação da norma, agora (também) deveriam levar em conta os Tratados e Convenções aceitos pelo Congresso em exercício das suas funções. Porém, a coisa não acaba com isto. Os instrumentos internacionais fonte do direito nacional precisam para serem postos em prática de leis operatórias. Essa era a grande dívida do Estado em relação a muitos direitos consagrados nesses Tratados: saúde, liberdade, interesse superior das crianças, educação, etc.


Três das leis que marcaram uma guia no exercício de direitos fundamentais explícitos na reforma de 1994 foram: a lei 25.673 que criou o Programa de Saúde Sexual e Procriação Responsável do ano 2002, a lei 26.150 que estabeleceu o Programa Nacional de Educação Sexual (mais conhecida como ESI) do ano 2006 e a lei 26.378 que aprovou a Convenção sobre os Direitos das Pessoas Deficientes junto com seu protocolo facultativo do ano 2008. Muito vem se debatendo em relação a estas leis como assim também em relação a sua aplicação progressiva e às mudanças significativas que repercutiram no interior das salas de aula do nosso país. Quais os principais lineamentos delas? Como aplicá-las? Os professores estão formados para poder também, como “juízes” dentro das salas, fazê-las respeitar? Que problemas configuram “desencontros” com as leis? Por quê? Quem tem o dever de criar os espaços de formação? É possível? Qual é o papel do habitus dos professores? Podem esses problemas limitar a efetiva aplicação das leis na escola?


No desenvolvimento farei uma análise sobre os principais lineamentos dessas leis que trouxeram um especial debate social no seu tempo e, inclusive, até hoje em dia. Proponho-me analisar as leis nomeadas no parágrafo anterior à luz das ideias principais desenvolvidas durante a pesquisa que formou parte do mestrado da autora Ademilde Félix no ano 1998 na cidade de Campinas, Brasil.


2. Desenvolvimento

2.1 AS LEIS E SEUS LINEAMENTOS PRINCIPAIS

2.1.a A Lei 25.673 de “Programa de Saúde Sexual e Procriação Responsável”

Foi sancionada e promulgada pelo Senado e pela Câmara de Deputados no dia 30 de outubro de 2002. Entre seus objetivos principais, estabelecidos no artigo 2, estão alcançar o nível mais alto possível de saúde sexual e procriação responsável com a finalidade de que as pessoas consigam tomar decisões livres de discriminação, arbitrariedades e violência; diminuir a mortalidade materno- infantil; prevenir a gravidez não desejada; promover a saúde sexual dos adolescentes, contribuir à prevenção de doenças de transmissão sexual e potenciar a participação feminina na toma de decisões relativas a sua saúde sexual sem discriminação.


Se bem todos os objetivos esperados a serem alcançados pela lei são importantes, gostaria de fazer foco naquele que diz: “.... Garantir a todos o acesso à informação, orientação e métodos referidos à saúde sexual e procriação responsável. ” (Inc. f). O acesso à informação em relação ao tema é, na minha opinião, um dos pontos mais importantes da lei, porque vai fazer com que as escolas sejam um dos centros de informação por excelência na formação do sujeito.


O artigo 5 diz que é o Ministério de Saúde junto com o Ministério de Desenvolvimento Social os que capacitarão os educadores com o fim de formar agentes capazes de efetivarem a norma. Essa capacitação tem a ver com a atualização dos conhecimentos, a criação de espaços de reflexão, criação de programas jurisdicionais relacionados com o assunto central da lei, etc.


Por último, o artigo 9 diz que: “As instituições educativas públicas de gestão privada confessional ou não, darão cumprimento à presente norma no marco das suas convicções. ” Este artigo é aquele que introduz a aplicação da lei dentro do âmbito educativo, dentro das escolas. Dita introdução é equivalente tanto para as escolas da rede pública quanto aquelas da rede privada, mesmo quando forem confessionais. Este artigo traz um debate muito forte devido que muitas famílias conservadoras se negaram de forma rotunda ao fato de seus filhos receberem qualquer tipo de informação em relação à educação sexual fora do âmbito familiar.


2.1.b A Lei 26.150 de “Programa Nacional de Educação Sexual Integral”

Foi sancionada e promulgada pelo Senado e pela Câmara de Deputados no dia 4 de outubro de 2006. Entre seus objetivos principais, estabelecidos no artigo 2, estão a incorporação da educação sexual integral dentro das propostas educativas; assegurar a transmissão de conhecimentos pertinentes e confiáveis atualizados; promover atitudes responsáveis ante a sexualidade, prevenir problemas relacionados com a saúde em geral e a saúde sexual e reprodutiva; fomentar a igualdade de tratamento e oportunidades tanto em homens quanto em mulheres.


Uma das questões centrais da lei está no artigo 1, onde especifica tanto o âmbito de aplicação quanto os destinatários da norma. No primeiro caso, a lei deve ser aplicada no âmbito nacional, provincial e municipal como assim também no âmbito da Cidade Autónoma de Buenos Aires. Em relação ao segundo aspecto, os destinatários são os alunos de escola em todos os níveis (incluindo o nível superior de formação docente- Art. 4). Outra das questões importantes expostas neste artigo é a definição do que é realmente a “ESI”: “... a que articula aspectos biológicos, psicológicos, sociais e éticos. ”.


No caso desta lei, sua implementação (a qual será de aplicação gradual e progressiva segundo o artigo 10) dependerá de dois fatores: o primeiro é aquele presente no artigo 8, onde diz que será cada uma das diferentes jurisdições, nomeadas no parágrafo anterior, as encarregadas de implementar o programa através da difusão dos objetivos; desenhos adaptados no currículo em relação à ESI e em função da diversidade local sociocultural e das diferentes necessidades dos grupos etários; o desenho e produção de materiais didáticos; o seguimento e supervisão do desenvolvimento das atividades obrigatórias feitas; a criação de programas de formação permanentes e de graça para educadores da rede e, finalmente, através da inclusão de conteúdos e didática da ESI nos programas de formação docente.


O segundo fator do qual depende a implementação no âmbito educativo do programa é dos estabelecimentos escolares (as escolas). O artigo 5 especifica que as jurisdições vão garantir o efetivo cumprimento da lei dentro das instituições por meio de ações educativas “sistemáticas”, isto é, de acordo com a realidade de cada uma delas, respeitando os ideários institucionais e as convicções dos seus membros.


Por último, a lei obriga no artigo 9 as autoridades jurisdicionais a criarem espaços de debate entre as famílias e a escola, cuja finalidade é a contínua formação e a ampliação das informações sobre os aspectos biológicos, fisiológicos, genéticos, psicológicos, éticos, jurídicos e pedagógicos em relação à ESI.

2.1.c A Lei 26.378 de “Convenção sobre os Direitos das Pessoas Deficientes junto com seu protocolo facultativo”

Foi sancionada e promulgada pelo Senado e pela Câmara de Deputados no dia 4 de outubro de 2008, tendo como antecedente de direito à Declaração Universal dos DDHH da ONU e todos os Pactos Internacionais sobre DDHH.


O artigo 1 explica quais os propósitos do documento em relação às pessoas descapacitadas e diz que procura “... promover, proteger e assegurar o pleno exercício e em condições de igualdade de todos os direitos humanos reconhecidos e liberdades fundamentais. ”. Este artigo define o que se entende por “descapacitado”: “... pessoas que tenham algum tipo de deficiência mental, intelectual, sensorial ou motora ao longo do tempo que, ao interagir com diversas barreiras, não possam ter uma participação plena e efetiva na sociedade nas mesmas condições do que os outros. ”. É interessante isto porque recentemente a RAE tem modificado o conceito de “discapacidad”, entendendo-a como “A situação da pessoa que por causa das suas condições físicas ou mentais duradouras se enfrenta com notáveis barreiras de acesso a sua participação social. ”. Como vemos... o termo tem deixado de lado a palavra “deficiência” e reforçou a situação de impedimento na participação social.


Os princípios gerais da lei são descritos no artigo 3: respeito à dignidade, não discriminação, participação plena, igualdade de oportunidades, acessibilidade, respeito pela diferença, etc.


Uma das questões importantes da lei que gostaria de analisar é a desenvolvida no artigo 24 sobre o direito à educação das pessoas deficientes em igualdade de condições, para o qual os Estados partes se obrigam a assegurar um sistema de educação inclusivo em todos os níveis. Isto tem a finalidade de que todos consigam desenvolver ao máximo seu potencial, criatividade, personalidade, etc., sem importar se a “barreira” dessa pessoa encontra sua causa em questões visuais, motoras ou auditivas.


O ponto 4 deste artigo diz o seguinte: “Com o fim de efetivar o pleno direito ao acesso à educação, os Estados partes adotarão medidas pertinentes para empregar professores, incluídos professores descapacitados, que tenham nível de proficiência suficiente em libras ou sistema Braille como assim também para formar profissionais e pessoas capazes de trabalhar em todos os níveis educativos. (...)”

Enfim, o acesso à educação é um direito que tem qualquer pessoa sem importar a condição na qual ela se encontra, permanente ou temporal. O Estado argentino se obrigou a efetivar esse direito nesta Convenção.

2.2 AS CRENÇAS DO PROFESSOR NA SALA DE AULA

2.2.a. Sobre o trabalho da autora

A autora Ademilde Félix analisou em profundidade no ano 1988 (durante uma dissertação apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos para a obtenção do grau de Mestre na área de Linguística Aplicada) uma pesquisa, de base etnográfica, de três professoras de uma escola oficial de 1° e 2° graus. A autora analisou as crenças dessas professoras sujeitos de pesquisa em relação a como o aluno deve estudar a LE.


Alguns dos conceitos básicos usados nessa análise foram recolhidos das ideias do orientador principal do trabalho de Ademilde, o professor Dr. Carlos Almeida Filho. No marco da nossa disciplina (Didática Específica 2), temos analisado algumas dessas ideias, entre elas: competência básica, competência aplicada, competência profissional, abordagem e motivação. Passarei a analisá-las no próximo ponto.


2.2.b. Os conceitos básicos

Uma das primeiras conclusões da autora durante sua pesquisa é que o ensino dessas três professoras era baseado em “crenças limitantes adquiridas” não só durante a vida profissional, mas também durante suas experiências como estudantes (e como estudantes de L2).


Seguindo as ideias de Filho, entende-se como competência básica àquela que se constrói a partir das crenças e experiências que os professores vão obtendo ao longo da sua vida, tanto como profissionais da educação quanto estudantes que alguma vez tenham sido. Por esta razão o autor chama à competência de “implícita”, pois ela está no nosso inconsciente, é formada sem que o percebamos de maneira direta ou consciente. São concepções e ideias que trazemos e moldam nossa maneira de ensinar. Ela é prévia à teoria, prévia ao conhecimento erudito ou “provado” pelas ciências da educação como serem a Didática ou a Pedagogia. Então, o professor reage dentro da sala de aula e toma decisões de acordo com esses conceitos e ideias que foram formados a partir da experiência própria.


O seguinte conceito desenvolvido no trabalho tem a ver com a chamada competência aplicada. Segundo o autor, "...é aquela que capacita o professor a ensinar de acordo com o que sabe conscientemente (subcompetência teórica) e lhe permite articular no discurso explicações plausíveis de porque ensina da maneira em que ensina e porque obtém os resultados que obtém. ” Aqui, o professor já conta com uma preparação teórica, já leu, já estudou e refletiu sobre a maneira de como se deve ensinar. Além disso, o professor já compreendeu que o ato de ensino- aprendizagem não é uma questão que possa ser feita por pura “intuição”, pois representa uma responsabilidade muito grande. O professor já sabe que para ensinar existem métodos, abordagens, maneiras que têm uma explicação, etc., coisas que ajudam a chegar até um resultado desejável na sala de aula.


Por outra parte, é desenvolvido o conceito de competência profissional. É aquela que, conforme o dito pelo autor, “... é capaz de fazê-lo (ao professor) conhecer seus deveres, potencial e importância social no exercício do magistério na área de ensino de línguas. ”. Ademais, ela faz com que o professor administre seu crescimento profissional, seu engajamento em movimentos e atividades de atualização de forma permanente. À medida que o profissional consegue desenvolver esta competência, junto com as outras, ele se torna uma pessoa mais crítica e autônoma no seu próprio trabalho diário.


Em relação ao conceito de abordagem, esta é entendida como “... uma filosofia, um enfoque de ensino, uma direção geral, um ideário, um tratamento ou uma aproximação do ensinar do professor (...). É uma força (potencial), na medida que só se realiza nas tarefas concretas de ensino e aprendizagem de uma língua-alvo...” (Almeida Filho, J., C., 1997, p.22). A abordagem se constrói com base nas competências que o professor adquire ao longo de sua vida. Essa é levada para a sala de aula e determina como se dará o processo de ensino que será oferecido por ele.


Por último, a motivação tem a ver com a predisposição durante o processo de ensino-aprendizagem. Acho que ela compromete tanto o professor quanto os alunos nesse processo.


2.2.c. Uma tríada problemática

É claro que os professores ao ingressarem nas suas salas de aula encontram diferentes barreiras para que possam, efetivamente, produzir-se o ensino-aprendizagem. Na minha opinião, são três os problemas básicos existentes desenvolvidos no trabalho da autora Félix: a formação, a motivação e os preconceitos.


No caso da formação, a autora diz que a formação do professor de L2 é bastante complexa ou, pelo menos segundo o dito no texto, não é uma coisa que surja de um dia para o outro, fácil, sem esforço, onde o fato de terem os professores um diploma já avalia completamente a efetividade do seu trabalho dentro da sala de aula.


Os professores precisam (necessariamente) de uma formação que seja contínua ao longo da sua vida profissional. Se nos perguntássemos o porquê disso, acho que o motivo principal seria (entre muitas outras coisas) a mudança dos contextos sob os quais o professor ensina. Ademais, porque nenhum grupo de alunos é exatamente igual ao outro, (inclusive nenhum aluno o será), com o qual todos aprendem de maneiras diferentes. Por outra parte, porque o passar dos anos faz com que surjam novas perguntas sem respostas, novos problemas sem solução, coisas para as quais nem o curso de formação de professores, nem a carreira, nem os livros e as muitas teorias aprendidas servem. Por tudo isso, o professor não pode deixar nunca de aprender.


Mas... quais os motivos que afetam de alguma maneira essa formação continua do professor? As causas podem ter origem em fatores muito diversos: econômicos, curriculares, motivacionais, sociais, etc. O professor que tem que trabalhar a jornada completa, trasladando-se de uma escola para a outra durante todo o dia e que, além disso, recebe um péssimo pagamento com o qual pode apenas subsistir... poderia pagar um curso de capacitação profissional? Sem tempo e sem dinheiro? A falta deles claramente impede essa formação contínua. Também pode ocorrer que o professor não seja realmente consciente da importância da contínua formação, o que acabará desmotivando-o.


Por outro lado, a formação se vê afetada quando dentro da sala de aula não se aplica realmente o objetivo que durante a carreira tinha se pensado. Por um lado, enfatiza-se na proficiência do professor-aluno, mas à hora de ensinar só se dedica apenas um ano à prática da língua- alvo.


O que será um verdadeiro problema é que à medida que o profissional continue sem receber formação, ele utilizará ainda mais sua competência básica (decidirá coisas baseado em experiências, intuições e crenças sem poder explicar desde o teórico o porquê).


No caso da motivação, entendida como um motivo que leva o indivíduo à ação ou uma força/energia que aciona e direciona o comportamento. O desejo de aprender é, afinal de contas, o verdadeiro motor da aprendizagem. É por isso que sem motivação é difícil que a aprendizagem tenha lugar na sala de aula.


Por último, a existência de preconceitos à hora de ensinar por parte dos professores pode chegar a ser um problema muito grande, devido a que eles estão presentes nas ideias e opiniões, do qual depende o tipo de abordagem que o professor tenha e desenvolva com os alunos. Os preconceitos são prévios, não têm uma base sólida nem lógica, senão que, muito pelo contrário, são baseados nos prejuízos.

2.3 A SALA DE AULA: ENCONTROS E DESENCONTROS

2.3.a. Um desencontro com a ESI

Tento imaginar o que terá acontecido aquele ano (2006) quando centenas de professores, de um dia para o outro, iam ter que aplicar nos seus planejamentos a educação sexual integral como elemento constitutivo. Acho que a resistência inicial na aplicação era até lógica. Imagino professores sem saber com certeza por onde começar, o que dizer, como... Sendo um “tema tão delicado”.


O primeiro limite na aplicação da ESI é, sem dúvidas, o preconceito: “Falar de sexualidade para uma criança de 3 anos? ”, “Agora o Estado vai doutrinar às crianças!”, “Ela veio pra mudar a biologia! ”, “A escola quer impor o lobby LGTB nas aulas! ”, etc. Muitas dessas ideias fizeram (e fazem) parte do pensamento da sociedade, dentro da qual encontram-se os professores.


O segundo limite é a DESmotivação. Já sabemos que a motivação é um dos motores mais importantes no processo de ensino-aprendizagem, por isso quando alunos e professores não conseguem encontrar uma motivação, seja qual for a disciplina, é difícil ensinar e aprender. Neste caso, acho que os mais desmotivados podem ser os professores (mais do que os alunos, os quais têm maior predisposição à ESI). Professores com ideias já formadas, filosofias de vida que contemplam muitos preconceitos, profissionais com falta de formação, etc. Que tipo de motivação podem ter? Como fará o professor católico ou cristã para falar dentro do marco da ESI sobre o aborto? O que dirá o professor sobre gênero tendo sido educado dentro de estruturas patriarcais altamente binárias? De que maneira tratará a afetividade o professor que acha que “... na escola se aprende, os sentimentos são para casa! ”? Etc. Coisas como estas desmotivam tanto professores quanto alunos, porque necessariamente isso vai repercutir na abordagem do professor e na maneira de aprenderem dos alunos.


O terceiro “desencontro” que encontrará a ESI na sala de aula será a falta de formação dos professores. Acho que inicialmente a lei pegou de surpresa a muitos, de fato que ninguém tinha formação específica para ensinar uma matéria com enfoque de ESI. Existe uma máxima (ou princípio geral) dentro do direito que diz: “Ninguém pode dar uma coisa distinta ou maior àquela que possui. ”.


Se o professor não tem formação, não sabe do que trata a ESI, como poderá então dá-la, transmiti-la e ensiná-la? É impossível. Esta foi uma das críticas mais importantes em relação à aplicação da lei. Um Estado que exigia coisas aos professores quando nem sequer tinha formado de maneira prévia espaços de debate nem cursos ou oficinas de orientação sobre como abordar a matéria. Outra questão que foi também crucial naquele momento foi a falta de produção de materiais didáticos com enfoque de ESI, eram poucos os livros que tratavam diretamente sobre o assunto. Isto impacta de forma direta na formação dos profissionais da educação.


2.3.b. Um desencontro com a inclusão

A lei analisada busca colocar em um pé de igualdade a todos e todas, além dos limites físicos ou mentais que as pessoas possam estar atravessando. Porém, também encontra muitos desencontros dentro da sala de aula. Para poder entender a origem desses desencontros acho mais conveniente começar em sentido contrário.


Na minha opinião, o primeiro problema ao aplicar a lei dentro da sala de aula é a falta de formação. Sabemos que existem cursos superiores (de formação de professores) bem especificados na temática da deficiência (coloco este termo porque não encontrei uma equivalência no português à hora de traduzir). No entanto, o que acontece quando o Estado tem como política de “inclusão” na sala de aula a seguinte: é necessária a integração de todos na sala. Pois não todos os professores são formados para poder trabalhar com casos específicos (dislexia/ discalcúlia/ disgrafia/ pessoas com problemas motrizes/ pessoas com problemas de audição leves/etc.). E é de público conhecimento que existe uma tendência de colocar poucos professores formados na área em cada sala (infelizmente quando existe a “sorte” de que isso aconteça), ora por falta de orçamento estadual, ora por falta de pessoas formadas nisso, etc.


O professor que chega à sala de aula e de um dia para o outro encontra que tem um aluno novo para o qual deverá fazer uma adaptação curricular é claramente um problema se não tem a informação específica sobre como é melhor abordar essa problemática. Seria interessante fazer uma pesquisa sobre a presença de espaços curriculares (matérias) existentes nos centros de formação profissionais para professores. Existem matérias destinadas ao ensino de libras? Temos nos Cursos de Professor de Português de línguas estrangeiras espaços onde são abordados especificamente problemas como dislexia o disgrafia? Alguém nos formou para ensinar português a uma pessoa cega? A resposta é não. Pouco se fala do assunto.


O texto nomeia como origem da falta de formação diferentes dimensões: social/econômica/tempo/etc. Entretanto, acho que o problema é estrutural, porque é nos centros de formação onde falta ainda muito caminho por percorrer. Por enquanto, não tenho a resposta à pergunta “O que fará o professor de português ao encontrar na sala uma pessoa com tal o qual problema? ”. Usará a sua imaginação e criatividade, se a tem, para fazer as adaptações necessárias e dar-lhe ao aluno essa igualdade descrita no texto da lei.


O segundo problema deriva de forma direta daquele que acabei de desenvolver. Quem não tem informação, formação específica, conhecimento numa área, etc. vai ter a tendência de gerar preconceitos e de se desmotivar.


No primeiro caso, quando o professor não sabe, o primeiro que pensará será: “É impossível ensinar português para alguém que não consegue ler/ entender/ ver/ ouvir/etc.”, “Por culpa desse menino agora todos os outros vão ficar atrasados na sua aprendizagem. ”, “Será impossível que o resto da turma se adapte ao novo colega com problemas. ”, etc.


Sabemos do impacto altamente negativo que estes tipos de preconceitos podem ter na vida dos alunos, sobretudo se esses alunos já vêm sendo rejeitados pelo sistema em geral e pelo contexto que os rodeia. O fato dos professores terem preconceitos é uma limitação importante se o objetivo é conseguir que o aprendizado seja efetivado, pois inclusive antes de ingressarem na sala de aula, eles já “sabem” que o aluno deficiente não terá possibilidades.


No caso da desmotivação, quando nos perguntamos que coisas são as que nos fazem desmotivar, sem dúvidas, uma delas é a falta de informação e, portanto, a falta de formação. O professor sente que não há aliança, que sempre haverá outra pessoa mais preparada para desenvolver essa tarefa frente a qual ele se encontra desafiado. Essa sensação de impossibilidade causa frustração e por suposto será um dos motivos que aumentará sua "tensão" dentro da sala no momento em que tiver que fazer seu trabalho.


Outra questão que desmotiva os professores é obviamente a falta de interesse. Muitas pessoas pensam: "Mas... se eu não me formei para isso, por que me obrigam? Se tivesse tido intenção de me dedicar inteiramente ao trabalho com pessoas deficientes então teria estudado outro tipo de curso de formação de professores!" Se lemos pensamentos como esses, na verdade tem um pouco de lógica. Acho pessoalmente que quem trabalha com pessoas que atravessam uma impossibilidade física ou mental tem vocação pelo que fazem, amam seu trabalho e inclusive, acontece muitas vezes que elas mesmas têm na família ou no seu círculo social alguém que também atravessa o mesmo problema, pelo qual pode entender desde a empatia o que essas pessoas sentem e quais os problemas sobre os que deveriam fazer foco.


Como sempre digo, o trabalho no âmbito educativo deve ser feito com vocação real, do contrário é difícil demais empatizar com qualquer pessoa.


Acho que existe um último desencontro: "estrutural”. Este limite/problema tem a ver com os obstáculos reais nos espaços físicos que são ocupados pelos sujeitos que intervém. Como conseguir que alguém com problemas motrizes ingresse numa escola que não tem rampa? Como integramos aquele que não escuta em salas com mesas retangulares onde não conseguirá ler os lábios dos colegas nem os colegas conseguirão ver os sinais feitos? Onde o sinal à hora de ter o recreio é somente sonoro e não visual (com luzes acima da porta por exemplo)? A formação para entender isto é fundamental também, eu não o entendi até que estudei libras e foi então que percebi quanto falta estruturalmente nas escolas argentinas para chegar até o objetivo de sermos "inclusivos". O mesmo acontece com as pessoas cegas. Como ensinar para alguém que tem um problema visual se nem computadores usáveis temos? Se na biblioteca da escola nem de casualidade há um livro em braile? É complexo demais. Como ensinar um conteúdo a alguém com dislexia numa sala com outros 30 alunos em tempo recorde e, além disso, conseguir que "a coisa dê certo"? Acho que as leis têm boas intenções, porém, é necessário parar e pensar as formas para aplicá-las e as possibilidades que temos, que com certeza precisam de nosso trabalho em conjunto (professores- escola- Estado Nacional).

2.4 COMO OS TEMAS SÃO ABORDADOS?

Se a abordagem, como já vimos, tem a ver com ideias, pensamentos e experiências de vida e de estudo tidas pelo professor ao longo da vida, então dependerá de como foi sua relação nesse diálogo com a ESI e a inclusão a sua maneira de abordá-las na sala de aula.


É claro que o professor que nasceu e foi educado sob uma estrutura patriarcal, rígida, machista, discriminadora, etc., terá duas possibilidades: a reprodução desse sistema ou a resistência ao mesmo, problematizando-o e criticando-o. As duas são muito possíveis. Mas, o importante na análise é que sempre a maneira de serem educados e os discursos aos quais tiveram nos primeiros anos de vida e formação acesso de alguma forma marcará o rumo da abordagem deles.


Outro fator importante, que já nomeei acima, é o fato de terem relação direta com o problema. A abordagem dada pelo professor que tem uma deficiência, que alguém da família tem, que um amigo tem, que o vizinho tem, etc., não será a mesma daquela tida pelo professor que não viveu nem experimentou o problema na sua própria vida.


O mesmo acontecerá com a ESI. O professor que por exemplo é homossexual não dará a mesma abordagem sobre o alvo da ESI "gênero" que lhe dará o professor altamente religioso ou conservador. A abordagem depende da experiência!


3. Conclusão

Como vimos, os inícios dos anos 2000 estiveram marcados pela aparição de leis que tiveram como objetivo materializar muitos dos direitos consagrados na Constituição Nacional e nos instrumentos internacionais de hierarquia constitucional insertos no artigo 75 Inc. 22 desse corpo normativo. Entre esses direitos é possível identificar o direito à liberdade de expressão, não discriminação, reprodução e sexualidade, respeito à diversidade e diferencias, inclusão, acesso em pé de igualdade à educação, etc.

Nesse sentido é que a escola configura o espaço por onde essa diversidade e as ideias são geradas, reproduzidas e ampliadas. A escola é o lugar do encontro. Um encontro que pode acabar em desencontro se não há formação suficiente, se falta uma motivação que sirva para impulsionar a nossa vontade e se existem preconceitos que limitem o ensino-aprendizagem, como assim também a falta de preparação física do espaço escolar que consiga que todos e todas se sentam a vontade, aceitos e cômodos.


Também, vimos que a abordagem depende das experiências e da relação que os professores tiveram e continuam mantendo tanto com a ESI quanto com a inclusão.


O que fazemos? Acho que a ferramenta mais poderosa sempre será a educação, a formação constante, isto é, nunca deixar de aprender e de considerar-nos eternos estudantes, porque sempre encontraremos novas situações que nos enfrentarão, que nos exigirão um "extra" da nossa parte, que nos colocarão em algum lugar incômodo (mas necessário para crescer), que serão um desafio. Agora o importante é entender que o desafio pode se tornar um pesadelo ou um impossível quando não temos a formação suficiente. É por isso que a autora Ademilde Félix faz e dá tanta importância à formação do professor, porque é a única maneira (ou pelo menos uma das maiores) que conseguirá tirar-nos da escuridão, essa escuridão que nos conduz ao preconceito e à desmotivação.

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