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Trabalhos de base em processos de ensino-aprendizagem de Português como Língua e Cultura Estrangeira

Ana Terra Leme -graduada em Artes Cênicas e Mestra em Arte pela Universidade de Brasília e professora na ENS Lenguas Vivas Sofía Broquen de Spangenberg desde 2014, compartilha neste artigo algumas reflexões sobre a importância do teatro na formação de professores.

 


Trabalhos de base em processos de ensino-aprendizagem de Português como Língua e Cultura Estrangeira: corpo e palavra entram em cena

Ana Terra Leme


Quando estamos aprendendo uma língua estrangeira precisamos de referências de vários tipos. Precisamos aprender um vocabulário que desconhecemos, familiarizar-nos com uma organização gramatical que pode ser próxima ou muito distante da nossa língua materna, precisamos incorporar novos sons que serão definidos como fones e fonemas no código da língua, entre vários outros processos de assimilação.

Venho dando aulas de teatro no Instituto Sofia B. Spangenberg, desde 2014. É uma matéria já do fim do curso, onde os estudantes que estão se formando para ser professores de Português como Língua e Cultura Estrangeira tem a possibilidade de vivenciar jogos dramáticos, jogos rítmicos; rudimentos de produção de consciência corporal e práticas com a palavra dita em exercícios de improvisação, leituras dramáticas, leituras de textos poéticos e de contos.


As aulas de teatro estão pensadas para esse contexto da formação dos professores de PLCE, e o que vem acontecendo desde que comecei a trabalhar nesse campo específico é que cada quadrimestre concluído me confirma que é fundamental que os estudantes possam organizar seu universo de referências sonoras dentro língua portuguesa articulando com a produção de uma compreensão do processo corporal próprio que supõe a escuta, a assimilação e a emissão desses novos sons vocais.


As vivências das aulas de teatro com seu caráter transversal dentro do curso, permite que esta compreensão se produza de uma forma específica: entra em campo o movimento corporal; práticas vocais pensadas para a interpretação de textos, para dar aulas; a interação com os companheires em situações de jogos dramáticos inspirando dinâmicas. Questões de literatura, cultura brasileira, gramática e fonologia podem ser abordados de uma maneira que a maioria dos estudantes não experimentou previamente: com o corpo e a voz em movimento, de maneira lúdica, e ao mesmo tempo trabalhando questões técnicas referentes à produção vocal e conceituais dentro do universo do PLCE. Compartilharei alguns princípios dessa experiência nessa reflexão que apresento a vocês.


O universo da Língua Portuguesa é imenso, profundo, histórico, como o de qualquer língua. Para quem nasce, e é criado num país como o Brasil, como é o meu caso, é nesse universo onde se dá minha primeira configuração como ser. Os primeiros sons percebidos, ouvidos, codificados; as primeiras palavras ouvidas e ditas; os afetos recebidos e dados; os processos de socialização, de aprendizagem, de escolarização; etapas de infância, puberdade, adultez… No meu caso, tudo foi vivido imersa no português brasileiro. Nesse universo, se pensamos na dimensão sonora, fonológica do português, a nasalização das vogais é um processo em que vamos tendo contato desde que somos amamentados ouvindo canções de ninar:

Nana neném, que a Cuca vem pegar, Papai foi na roça, mamãe foi trabalhar…

Um contato estreito e afetivo vai se desenvolvendo com o universo sonoro de nossa língua materna, bem antes de que possamos dizer nossas primeiras palavras. Isso também se aplica se pensamos sobre a capacidade de reconhecer e pronunciar os diferentes timbres do “e” e do “o”, por exemplo. São alguns processos específicos que não se constituem em dificuldades para mim que sou nativa do Brasil, mas o são, muito frequentemente, para aqueles que estão aprendendo o português brasileiro como uma língua estrangeira.


Por outro lado, eu posso narrar dificuldades que tive no processo de aprendizagem de outras línguas. No caso da língua inglesa, por exemplo, assimilar os sons do “th” ( /ð/, /θ/), em “thing”, em “this” ou “that” me demandou tempo e dedicação poder pronunciá-los. No meu aprendizado da língua castelhana, também posso falar da dificuldade de fazer a vibração necessária para que todos os erres de “ferrocarril” soassem como precisavam ser. Ou também, aprender a perceber que o tempo que eu deixava soando o “e” do carinhoso apodo “Mecha”, dedicado à uma querida amiga, era longo demais e o timbre aberto demais para um nome argentino. As dimensões afetivas vão se associando às etapas de assimilação cognitiva.


Aqueles que estão aprendendo português podem contar sobre a atenção especial que precisam dar à produção de certos fonemas e qual o grau de dificuldade que estão encontrando, nas etapas iniciais da aprendizagem. No caso de estarem em formação para ser professores, esse processo requer maior cuidado ainda porque além de desenvolver a capacidade de começar a produzir esses novos sons, é necessário uma etapa de elaboração posterior: é preciso compreender esse novo processo corporal que está realizando essa nova produção sonora. Se os estudantes não puderem compreender corporalmente o que foram realizando em termos de movimento e de ampliação da percepção auditiva para a produção dessas novas emissões sonoras, não produzirão a compreensão e a confiança necessárias para guiar seus futuros estudantes em relação a seus processos. E como posso colaborar para que este processo de compreensão seja iniciado no campo da corporalidade?


Maria Cristina Moreno, terapeuta e trabalhadora corporal argentina, mestra ativa e incansável do alto dos seus 70 anos de ofício em constante movimento, vem ensinando há mais de quarenta anos a colocar os pés em paralelo como ponto de partida para iniciar movimentos e processos em múltiplas dimensões: corporais, simbólicas, afetivas, anímicas, atitudinárias, filosóficas, espirituais. Colocar os pés em paralelo constitui uma ação primeira em uma aula de trabalho corporal que permite começar a alinhar-nos, a perceber e corrigir nosso eixo longitudinal, perceber nossos apoios sobre o chão, perceber a distribuição de peso do nosso corpo e corrigi-la. Uma ação concreta, singela, ao alcance de todos os estudantes que tive ao longo desses anos. No caso de haver alguma particularidade física que impeça esse primeiro passo, se buscam alternativas para gerar as melhores condições possíveis para se iniciar as práticas.


A vivência de colocar os pés em paralelo, uma e outra vez, vai criando em cada une de nós uma possibilidade de registro próprio: como estou hoje? Como está meu corpo hoje? Como me preparo para iniciar uma ação?


Quando podemos começar a formular perguntas, começa a haver a possibilidade de movimento, começa a haver a possibilidade de uma ação concreta para modificar minha realidade, em um amplo sentido. Ao começar a prestar atenção em como fico em pé, posso começar a me perceber de forma consciente, começo a produzir a possibilidade de poder me corrigir, algo que pouco a pouco pode devir em uma melhoria de aspectos posturais de coluna, por exemplo, e se levado a sério em uma prática constante, consciente e reflexiva, dentro do campo do trabalho corporal, vai se plasmando em mudanças atitudinais.


Sim, estamos no século XXI e segue sendo necessário trabalhar arduamente na integração de nosso ser. Corpo, alma, espírito; sentimentos, pensamentos, palavras, ações; quem pode dizer que os percebem em perfeita sintonia em si mesmo, sem contradições, sem incoerências? A bem da verdade, podemos dizer que trabalhamos internamente para diminuir nossa fragmentação, para produzir nossa integração, nossa coerência. Quem sou eu? Como estou eu? Com quem, com que, com que grupos me vinculo? Como me vinculo?


Um exercício feito de forma mecânica pode trazer benefícios mínimos, ou reforçar rigidezes musculares. Um movimento feito com consciência em uma aula de trabalho corporal pode mudar a perspectiva de abordagem de um tema que precisa ser resolvido. Esse é um registro claro que tenho por integrar um dos grupos de trabalho corporal há 13 anos, coordenado por Cristina Moreno em seu Espaço Golondrina Blanca. “Do movimento à palavra, da palavra ao pensamento”, este é um princípio conceitual sintetizado e transmitido por ela uma e outra vez ao longo desses anos e que vem inspirando minha prática docente.


A partir de uma ação concreta e singela vou propiciando uma disponibilidade para a percepção das minhas produções corporais (voz e movimento), para a ampliação de minhas possibilidades em relação a elas, para a flexibilização de certos tônus fixados (excessivamente tensos ou excessivamente laxos) que incidem sobre essas produções. Quando experimento conscientemente colocar meus pés paralelos sobre o chão vivencio como balanceio meu peso corporal sobre meus apoios. Sua prática constante em nosso cotidiano permite prevenir complicações nas articulações dos joelhos, nas articulações coxo-femurais, descompensações nos quadris, e quanto melhor é nossa base de sustentação corporal, como ensina Moreno, melhores possibilidades tenho de me posicionar em relação à vida, em ações concretas e em múltiplas dimensões.


Se pensamos na produção vocal, uma base corporal alinhada e balanceada é muito mais possibilitadora para uma melhor sustentação abdominal, para o trabalho diafragmático, para o trabalho com minha capacidade respiratória, para o trabalho de ampliação consciente e de mobilidade de nossos espaços internos, sejam eles a cavidade bucal, o palato mole, o espaço laríngeo, pulmonar, os espaços entre as vértebras cervicais.


E por que estou trazendo este tema para o terreno do ensino-aprendizagem de PLCE? Por algumas razões fundamentais: a primeira, que já esbocei anteriormente, é que um docente de português necessita dominar o universo sonoro do português. Não há negociações em relação a isso. É necessário que ele desenvolva a capacidade de observação, de percepção auditiva e de imitação para a produção desses novos sons, sendo ou não nativo. Se não posso produzir a capacidade de dizer um fone ou um fonema específico, compreendendo seu processo, não posso guiar o processo de aprendizagem de alguém em relação a isso. Colocar meus pés em paralelo, me alinhar, me disponibilizar para ouvir, observar, imitar, dizer, começar a registrar esses novos movimentos que vou fazendo para falar essa nova língua, pode ser um início promissor. Um ponto de partida concreto e simbólico que sugiro aos estudantes que venho encontrando ao longo desses anos: colocar os dois pés paralelos para começar a me expressar nessa língua, colocar os dois pés paralelos nesse novo território para poder começar a habitá-lo, a vivê-lo.


Para começar a falar é necessário ouvir antes. Essa é uma verdade tautológica. Se preciso ouvir, necessito recorrer a referências prévias e aqui entra a relevância das decisões que tomamos em nossas escolhas. O português brasileiro é abundante em variações linguísticas e eu me aborreço particularmente quando ele é apresentado em sala de aula com um recorte recorrente: as variantes das capitais do Rio de Janeiro e São Paulo, contemporâneas e pela voz de jornalistas televisivos que em geral são de uma única rede de televisão hegemônica no Brasil. Sabemos que há necessidades do mundo do trabalho que precisamos contemplar, mas aprender uma língua também é estar em contato com as culturas onde ela está existindo, sendo dita, criada, reproduzida, modificada. Felizmente tal recorte vem se flexibilizando e os exemplos vão se ampliando pouco a pouco.


Nesse sentido, fazer um mapa de referências sonoras brasileiras, um mapa próprio é uma prática muito proveitosa e inspiradora; e recorrendo a essa metáfora, venho compartilhando mapas dos meus atlas de referências sonoras brasileiras - e às vezes portuguesas e moçambicanas - sempre que tenho oportunidade. Compilar um mapa próprio de referências sonoras com homens e mulheres de distintas idades, níveis socias, regiões geográficas falando, cantando, narrando, declamando, informando, discursando, explicando…. é um recurso muito valioso, desde o meu ponto de vista, para a sensibilização do novo aprendiz do PLCE.


Quando trabalho para produzi-lo vou conectando e articulando noções prévias e novas, vou integrando dimensões sonoras e afetivas: o que ouço me mobiliza ou passa a me mobilizar quando começo a reconhecer novos sons, novos sentidos, novos conceitos. Busco imitar o que ouço, busco encontrar minha própria voz enquanto digo diferentes tipos de texto. Participo de uma vivência lúdica interagindo com meus colegas, improvisando textos já existentes, lendo em voz alta textos que inventei, lendo de diferentes formas textos feitos por meus colegas. Não só a produção de fones e fonemas começa a ser exercitada e colocada à prova, aqui já começamos a trabalhar prosódia, entonações e estamos frente à possibilidade de que um verdadeiro portal se abra: o portal dos matizes interpretativos da palavra dita.


Sim! Eu venho do teatro e esse campo me fascina! Posso me dedicar a trabalhar pormenorizadamente com meus estudantes durante horas e horas, os versos de um poema, os parágrafos de um conto, trechos de contracena de obras teatrais. Investigar a estrutura de um texto, identificar suas possibilidades rítmicas, melódicas, mapeá-lo, criar lugares sonoros com sentido ao interpretá-lo, começar a fazê-lo viver além da letra escrita quando leio em voz alta, torná-lo próprio quando o decoro e o faço cena. Eu vivo este trabalho com grande prazer e procuro abrir as portas dessa vivência a meus estudantes.


Que referências podem fazer parte de um mapa sonoro que seja produtivo, inspirador, representativo do português Brasil adentro? Por exemplo, Maria Bethânia (Santo Amaro, recôncavo bahiano) navegando entre canto e poesia em seus concertos e especialmente em seu espetáculo “Cadernos de Poesia”, onde traça um verdadeiro guia de obras poéticas brasileiras, com seu amado poeta português, Fernando Pessoa, incluído. Os aboios, canções, narrativas e encontros musicais de Xangai (Itabebi, sul da Bahia) na webserie “Catingueiros”. As aulas–espetáculo de Ariano Suassuana (João Pessoa, Paraíba e Recife, Pernambuco) do alto de sua ancianidade, de seu profundo conhecimento da língua portuguesa e seu humor contagiante, onde as anedotas convivem com poemas de tradição oral do séc. XVII, com música de câmara interpretada ao vivo. Elisa Lucinda (Cariacica, Espírito santo) atuando em “Parem de Falar Mal da Rotina”, espetáculo teatral há 17 anos em cartaz, com seu sotaque inconfundível e seu estilo próprio de dizer poesia. O documentário poético de Renato Barbieri, “Cora Coralina, Todas as Vidas” baseado na vida e obra da poetisa Cora Coralina (Cidade de Goiás, Goiás), com atrizes de diferentes idades e origens dizendo seus poemas, além de gravações históricas de sua voz. Adelia Prado (Divinópolis, Minas Gerais) dizendo seus próprios poemas ou debatendo questões filosóficas… e poderia seguir enumerando muitos exemplos mais.


Ler e escrever são ações que vamos aprendendo de forma articulada durante nossas primeiras etapas de escolarização. Ou pelo menos é um princípio básico da escolarização que cada um de nós foi vivendo com maior ou menor eficácia. Ouvir e dizer, também são ações intimamente conectadas. Entrar em contato com referências que ofereçam matizes sonoros plurais, de diferentes variedades linguísticas, com riqueza interpretativa se constituem em pontos de partida para ampliar meu panorama de emissão vocal, para ampliar meus recursos para abordar um texto e pode significar num futuro, não muito distante, que algumas crianças tomarão gosto pela leitura ao ouvir seu professor de português lendo histórias.


Quando começamos a nos disponibilizar para esse novo panorama sonoro, a leitura em voz alta também começa a se modificar. Nas aulas de teatro, ela começa a ser vivenciada pelos estudantes de uma forma diferente: com uma preparação corporal prévia, com uma preparação do espaço em que vai se desenvolver tal leitura, com uma projeção de voz diferente da que estão acostumados, com uma atenção não só à prosódia do texto mas também aos matizes interpretativos que o farão singular e atraente aos ouvidos de seus interlocutores.


Parece simples como colocar os pés em paralelo, não é mesmo? Muito bem, lembrando as incontáveis vezes que ouvi de Moreno, com um sorriso: - “Façam”!


Podemos ir conversando no caminho sobre o que vai acontecendo e podemos ir ampliando essas reflexões baseadas na prática docente e iluminadas pelo trabalho corporal.


Para nosso próximo encontro em Lusofia, vou seguir nesse caminho de reflexão sobre a corporalidade e a produção vocal dentro do campo do PLCE, pensando em algo que une atores e professores em suas profissões: ambos necessitam realizar uma produção vocal em altas intensidades em seu ofício diário, ao longo de suas vidas. Que recursos e possibilidades temos para lidar com essa demanda? Que recursos precisamos produzir e pôr em prática?


Até nosso próximo encontro!

 

Referências do material citado disponível em internet


CADERNOS de Poesia. Direção e concepção de Maria Bethânia. Direção DVD: Gringo Cardia. 1 DVD (75 min) realizado por Quitanda e Biscoito Fino. 2015. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=P0zBre0r2Jk . Acesso em 27 de novembro de 2020.


CORA Coralina: Todas as Vidas. Direção: Renato Barbieri. Asa cine Produções, ANCINE. 2018. 1 DVD (75min). Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=NBqBVoBT-4I . Acesso em: 20 de novembro de 2020.


XANGAI em Catingueiros. Episódio 1: da origem ao popular. Direção: Igor Penna. Realização: Luz das Artes. 2018. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=1Gj5Pc6zhnA . Acesso em 26 de novembro de 2020.


ADÉLIA Prado - Imagem da Palavra – Parte 2. Youtube. 16 dez. 2014. Publicado pelo canal: Imagem da Palavra. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0i65FM-yBUc . Acesso em: 27 nov 20.


ARIANO Suassuna. Me dê sua tristeza, que lhe dou minha alegria. Youtube 2 set. 1997. Publicado pelo canal: Território do Conhecimento. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ktE312WhC9s . Acesso em: 27 nov 20.


PAREM de Falar Mal da Rotina. Direção e atuação: Elisa Lucinda. 1 video (80 min) Publicado pelo canal Ercilio Frizzera. Registro videográfico do espetáculo teatral filmado em 21/07/2013, na cidade de Itaguaçu (Espírito Santo). Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=f9F7_Vf1fmA Acesso em: 22 de novembro de 2020.




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