Neste artigo, Silvia Graciela Fiorenza -professora de ensino fundamental, bibiotecária e atual estudante do curso de professores de português na ENS Lenguas Vivas "Sofía Broquen de Spangenberg" compartilha reflexões sobre a produção infantil de Monteiro Lobato através do “Sítio do Picapau Amarelo”.
Monteiro Lobato e a literatura infantil brasileira
A literatura infantil brasileira, nos primeiros tempos, chegava diretamente de Portugal pois não existiam no Brasil casas editoras. Consistia numa literatura cara, para poucos e com uma realidade que não tinha relação com a das crianças e os jovens do Brasil.
Monteiro Lobato (1882-1948), homem de iniciativa, modificou o mercado editorial fundando a primeira editora brasileira chamada “Monteiro Lobato & Cia”. Pouco tempo depois, no ano 1919, transforma-se sem sua participação na “Companhia Editora Nacional” dando início ao movimento editorial brasileiro. Comprometido com seu país afirmava seu desejo de publicar só autores inéditos e nacionais, favorecendo o surgimento de muitos escritores e de outros que passavam a ter seus livros publicados no país. Nelly Novaes de Coelho reconhece no autor dois motivos pelos quais teve sucesso, notoriedade e originalidade: “a necessidade de ruptura com o sistema de vida racional” e “a defesa incondicional do homem-de-iniciativa” confrontado com aquele que simplesmente toma a vida como lhe foi dada (COELHO, 1991).
O primeiro livro infantil editado por Lobato e de sua autoria foi Narizinho arrebitado (1919), edição que tinha 50.500 exemplares dos quais quinhentos foram doados para escolas públicas. O sucesso gerado nas crianças motivou o Secretário do Interior a fazer uma compra por 30.000 unidades que foi entregue dois dias depois. Isto se destaca na leitura do texto de Juliana Siani Simionato apresentado no ”I Seminário Brasileiro sobre Livro e História Editorial” no ano 2004. Este sucesso de Narizinho arrebitado (1919) na Literatura Infantil Brasileira é atribuído ao fato das crianças se identificarem com os enredos que aparecem na história e com os protagonistas que com irreverência, humor e ironia própria dessas idades resolvem as mais estranhas situações de forma simples. Incentivando a liberdade de ação e o sentimento positivo. Além de reproduzir a cultura brasileira com sua linguagem, seus costumes, seu imaginário no “Sítio do Picapau Amarelo”, a fazenda onde ocorrem muitas aventuras. Situações até esse momento desconhecidas ou que não apareciam por serem obras escritas por estrangeiros (COELHO, 1991).
A maioria dos críticos de Literatura Infantil Brasileira considera este momento e Monteiro Lobato como um “divisor de águas”, nominando três momentos bem diferenciados na literatura infantil brasileira: Período Pré-lobatiano (1808-1920), Período lobatiano (1920-1950) e Período Pós-lobatiano (1950- até a atualidade).
Monteiro Lobato: uma nova literatura infantil aparece
São exemplos de autores Pré-lobateanos: Antonio Marques Rodrigues (1826-1873) com O livro do povo (1886), Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) com Contos infantis (1886), Olavo Bilac (1865-1918) com Através do Brasil (1910). (COELHO, 1991)
O livro Narizinho arrebitado inicia a fase de produção literária infantil e juvenil brasileira nova, pois percebe que os leitores possuíam necessidades diferentes do que tinham à sua disposição, provoca então uma mudança nos paradigmas até esse momento usados sobre o que era literatura infantojuvenil. Ziraldo (1932), cartunista e desenhista autor de O menino maluquinho (1980), escreve para A Folha de São Paulo (13 de setembro de 1997) a importância que o livro de Lobato tinha para o seu pai com estas palavras:
(...) Isso foi no começo dos anos 20, e ele lembrava que achou estranho encontrar um livro infantil, na escola, só para menino ler e não para estudar. Ele achava isso o máximo! E não se esquecia de que o livro se chamava "Narizinho Arrebitado".(...)
Já havia bem mais de 20 anos que ele havia lido aquele livro e nunca mais tinha ouvido falar dele, perdido que vivia numa cidadezinha do interior do Brasil.
Até que um dia cheguei da escola trazendo um livro que havia pedido emprestado na Biblioteca do Grupo Escolar. E o livro se chamava "Reinações de Narizinho".
Eu perguntei pro meu pai: "Não será esta menina aqui a sua Narizinho Arrebitado, pai?" E ele me perguntou: "Como é o nome do autor do livro?" Eu disse: "Um tal de Monteiro Lobato!"
O rosto do meu pai se iluminou e, a partir desse dia, o Monteiro Lobato e eu ficamos amigos para sempre. (ZIRALDO, 1997)
Neste Período, Lobato desenvolve a sua obra composta de 23 títulos onde se observa influência de seus próprios momentos vividos principalmente durante sua infância na fazenda de seus avôs. O Sítio do Picapau Amarelo é uma fazenda do interior onde acontecem as mais disparatadas aventuras vividas pelas personagens, Narizinho e a sua boneca de pano Emília, Pedrinho, Dona Benta, Tia Nastácia, o Visconde de Sabugosa, Jeca Tatú, o Marquês de Rabicó e a Cuca. Cada um deles tem características bem definidas: Narizinho e Pedrinho são as crianças de todos os tempos, Emília diz tudo o que pensa, o Visconde de Sabugosa é o sábio que só acredita no que está nos livros, Dona Benta é o adulto culto e aberto de ideias que aceita a imaginação infantil, Tia Nastácia é o adulto sem cultura que pensa que tudo o que é desconhecido é pecado ou ruim, a Cuca é a malvada e, além disso, está o Pó de Pirlimpimpim que desfaz os limites e transporta as crianças a novas aventuras. Tudo com enorme identificação no mundo infantil brasileiro, narrado numa linguagem coloquial.
Uma das preocupações principais de Lobato era o melhoramento do povo, e seu projeto com as obras era influir na formação das crianças. É com esta ideia que alguns títulos tratam da aritmética, outros da gramática, geografia, história, natureza, do céu. Também mitologia e até obras europeias como Peter Pan, O Quixote, Fábulas entre outras. Muito interessante é a observação do tratamento que o autor faz do campo semântico próprio de cada matéria.
Tal foi a popularidade desta fazenda que em 1952 foi transformado em série de televisão. Para as emitidas pela Rede Globo (1977) as músicas contam com a participação de grandes nomes da MPB sob o comando do cantor e compositor Dorival Caymmi. A canção “Sítio do Picapau Amarelo” é escrita e interpretada por Gilberto Gil, “Narizinho” por Ivete Sangalo, “De sabugo a Visconde” por Lenine entre outros.
Sítio do Pica-pau Amarelo
Marmelada de banana, bananada de goiaba
Goiabada de marmelo
Sítio do Picapau Amarelo
Sítio do Picapau Amarelo
Boneca de pano é gente, sabugo de milho é gente
O sol nascente é tão belo
Sítio do Picapau Amarelo
Sítio do Picapau Amarelo
Rios de prata, pirata
Voo sideral na mata, universo paralelo
Sítio do Picapau Amarelo
Sítio do Picapau Amarelo
No país da fantasia, num estado de euforia
Cidade polichinelo
Sítio do Picapau Amarelo
Sítio do Picapau Amarelo
Gilberto Gil, março, 1977
Vários escritores do Período Lobatiano foram acompanhados e incentivados por Lobato e se destacam: Malba Tahan (1895-1974) com O homem que calculava (1935); Érico Veríssimo (1905-1975) com Aventuras do avião vermelho (1936); Graciliano Ramos (1892-1953) com A terra dos meninos pelados (1942); Menotti del Picchia (1892-1988) com No país das formigas.
No site oficial da família e admiradores de Malba Tahan aparece a carta que recebe de Monteiro Lobato na que se percebe o interesse pela obra, o apoio para continuar escrevendo histórias e o desejo, como Lobato escreve, de que “Alá nunca cesse de chover sobre Malba Tahan a luz que reserva para os eleitos”.
Na década de 1970, período pós-lobateano, a fantasia para o público infanto juvenil recebe as histórias em quadrinhos, principalmente com Ziraldo (1932) e a sua obra A turma do Saci Pererê (1960), mais o grande sucesso foi O menino maluquinho (1980). Outros escritores se destacam, entre eles está Clarice Lispector (1920-1977) com O mistério do coelho pensante (1967) ou A vida íntima de Laura (1974); Jorge Amado (1912-2001) com O gato malhado e a andorinha Sinhá (1976); José Mauro de Vasconcelos (1920-1984) com o renomeado O meu pé de laranja lima (1968). Assim como Ziraldo percebeu a influência de Lobato em sua infância também Lispector descreve em Felicidade Clandestina (1996), conto autobiográfico, a ansiedade por conseguir esse livro objeto desejado que era a obra de Monteiro Lobato.
(...) Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.
Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. (LISPECTOR, 1996, p. 53-54)
Na atualidade, a quantidade e a qualidade dos escritores brasileiros que se destacam na literatura infantil e juvenil é de enorme importância, receberam vários prêmios internacionais e demandará uma análise especial que será tratado num artigo posterior.
Como conclusão quero destacar que uma das maiores conquistas de Monteiro Lobato foi colocar o universo infantil e suas raízes culturais na literatura, no “Sítio do Picapau Amarelo”, lugar do qual as crianças conseguem se apropriar vivendo as aventuras de seus protagonistas. Suas obras relacionam o imaginário com a realidade, sem perder frescura, humor, com soluções originais a coisas de todos os dias. Facilitou e fez divertido o acesso a temas escolares. Outra foi afirmar a produção local de escritores nacionais e motivar o surgimento de novos artistas que prontamente foram também reconhecidos no estrangeiro com traduções em diversas línguas.
Referências bibliográficas
COELHO, Nelly Novaes. Panorama histórico da Literatura Infantil/Juvenil. 4.ed. São Paulo, Ática, 1991.
LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina. disponível em: http://static.recantodasletras.com.br/arquivos/4545694.pdf?1488823890
LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina. disponível em: https://youtu.be/mbSMwUNjwtE
LOBATO, Monteiro. A chave do tamanho. 10a. ed. São Paulo, Editora Brasiliense, 1969.
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho, no Reino das Águas Claras. São Paulo, Editora Brasiliense, 1998.
LOBATO, Monteiro. O Picapau Amarelo. 34a. ed. São Paulo, Editora Brasiliense, 1997.
LOBATO, Monteiro. O Poço do Visconde. 21a. ed. São Paulo, Editora Brasiliense, 1993.
LOBATO, Monteiro. Aritmética da Emília. 29a. ed. São Paulo, Editora Brasiliense,1995.
LOBATO, Monteiro. Memórias da Emília. 42a ed. São Paulo, Editora Brasiliense,1994.
LOBATO, Monteiro. Assembleia na mata, de como os bichos se assustam quando os meninos matam a onça. 4a. ed. São Paulo, Editora Brasiliense,1994.
LOBATO, Monteiro. Narizinho arrebitado, de como Narizinho conhece o Príncipe Escamado. 6a. ed. São Paulo, Editora Brasiliense,1994.
LOBATO, Monteiro. Carta pessoal dirigida a Malba Tahan disponível em: http://www.malbatahan.com.br/biografias/1937-1957/#homem
LOBATO, Monteiro & Cia. http://www.livroehistoriaeditorial.pro.br/pdf/julianasimionato.pdf http://www.livroehistoriaeditorial.pro.br/pdf/julianasimionato.pdf
SANDRONI, Laura. Brasil: una literatura infantil en expansión. disponível em:
http://sitiodopicapauamarelosp.com.br/personagens-de-monteiro-lobato.html
ZIRALDO e a Folha disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/9/13/folhinha/11.html
ZIRALDO. Tudo em família. O melhor do menino maluquinho em quadrinhos 3. 1a. ed. São Paulo, Publifolha, 1999.
MÚSICAS disponíveis em https://www.vagalume.com.br/sitio-do-picapau-amarelo/
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