CAMPOS E STRAVINSKY: a apoteose da força modernista
- Alejandra Leoni

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A professora Alejandra Leoni explora os diálogos entre literatura e música e propõe uma leitura paralela entre a poética sensacionista de Álvaro de Campos e a estética modernista de Igor Stravinsky, tomando como eixo comum a busca da Unidade através do dinamismo, do ritmo e da multiplicidade. Adaptado e reformulado a partir da apresentação realizada em 9 de junho de 1994 no I Encontro Internacional de Língua e Culturas Lusófonas (“Universos da Língua Portuguesa”), na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidad Nacional de Cuyo, o ensaio revisita aquelas reflexões iniciais para destacar afinidades formais e impulsos modernistas que aproximam ambos criadores.
CAMPOS E STRAVINSKY: a apoteose da força modernista
Por Alejandra Leoni*
A busca eterna da Unidade através do reino da multiplicidade pareceria servir de base à heteronímia pessoana enquanto fenômeno através do qual o poeta se dissemina por todas as máscaras e ficções de uma escrita múltipla.
Ao apresentar em sua obra poética estéticas diferentes, inclusive contrárias, como poderiam ser o modernismo de Álvaro de Campos e o neoclassicismo de Ricardo Reis, Fernando Pessoa personifica a Unidade, pois ele reúne em si próprio toda essa multiplicidade materializada nas dicotomias do seu interseccionismo, no rigor formal do apolíneo Reis, na poesia natural e livre do Mestre Caeiro ou no sensacionismo modernista de Campos...
Escolhi o engenheiro naval nesta ocasião, por ser ele o criador do sensacionismo que serve de base à heteronímia pessoana.
Mas por que quis eu associar Igor Stravinsky com o heterônimo pessoano Álvaro de Campos? Talvez porque, intuitivamente, a música dele evoca, aos meus ouvidos, a poética do engenheiro sensacionista. Com ou sem razão? Com razão, e sem ela...
Com razão, porque depois de senti-lo, procurei averiguar o porquê e achei a resposta nas próprias palavras do músico, na sua concepção estética, coincidente em vários pontos com a concepção estética de Campos.
Sem razão, porque o soube com o sentimento, com a percepção, antes de compreendê-lo com a razão, e achei a explicação no próprio discurso musical do compositor russo.
A "Consagração da Primavera", por exemplo, tem a força, o dinamismo, o ritmo e a instrumentação utilizados por Campos nas suas Odes "Triunfal" e "Marítima". A percussão acompanha -com força ou com a subtil regularidade de uma pulsação- todo o percurso da obra. A estridência dos instrumentos de sopro é um chamamento, um grito, um sinal de alerta. As exclamações e onomatopeias usadas por Campos teriam o seu paralelo nas batidas irregulares dos tímpanos do músico, num paroxismo que pareceria caracterizar o homem contemporâneo.
Vamos então ver quais são as coincidências que aparecem nas obras poética e musical destes fiéis representantes do modernismo.
O sensacionismo é, per se, uma polifonia, não já de vozes mas de sensações: a doutrina da multiplicidade de sensações. O próprio Campos diz em "Passagem das Horas":
"Sentir tudo, de todas as maneiras,
Viver tudo, de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos,
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo." (1)
Em "Ode Marítima", por exemplo, vê-se claramente essa alteridade que se desdobra querendo abranger a totalidade, repartida em múltiplas coisas:
" Ah, ser tudo nos crimes! Ser todos os elementos componentes
Dos assaltos aos barcos e das chacinas e das violações!
Ser quanto foi no lugar dos saques!
Ser quanto viveu ou jazeu no local das tragédias de sangue!
Ser o pirata-resumo de toda a pirataria no seu auge,
E a vítima-síntese, mas de carne e osso, de todos os piratas do mundo!". (2)
Campos quer ao mesmo tempo "ser pirata" e "ser vítima", ser o resumo, a síntese dos contrários, isto é, a Unidade. E esta Unidade é explicitada em outro fragmento da "Ode Marítima", quando diz:
" O clamoroso chamamento
A cujo calor, a cuja fúria fervem em mim
Numa unidade explosiva todas as minhas ânsias,
Meus próprios tédios tornados dinâmicos, todos! ... (3)
Mas... de que maneira estes elementos aparecem na música de Igor Stravinsky?
Na sua "Poética Musical" o compositor fala do fenômeno musical dizendo que ele é uma emanação do homem integral, isto é, armado de todos os recursos de seus sentidos, de suas faculdades psíquicas e das faculdades de seu intelecto.
Francis Routh, no seu livro "Stravinsky", refere-se à estreia de "Petruchka" dizendo: "A obra possuía uma brilhante fusão de opostos. O patetismo de Petruchka contra o fundo de esplendor da Feira de Carnaval; o mundo da imaginação enfrentado ao mundo da realidade; o uso da canção tradicional contraposto ao estilo próprio de Stravinsky". (4)
Por trás deste jogo de opostos, destes contrastes, o músico sempre vai à procura da Unidade e da Universalidade. A sua produção artística constitui um todo em constante evolução para o qual cada obra em particular traz um elemento distinto, variado, único.
Em outra parte da sua "Poética Musical", o compositor explica que através da justaposição de tonalidades vigorosamente contrastadas ele pode produzir uma sensação imediata e violenta; se ao contrário, ele reúne cores vizinhas, chega menos diretamente, mas com maior segurança, ao mesmo fim. O princípio deste método nos revela a atividade subconsciente que nos inclina para a Unidade, já que instintivamente preferimos a coerência e a sua força, tranquila, aos poderes inquietantes da dispersão, o Reinado da Ordem por sobre o Reinado da Dissimilitude.
Coincidem também os criadores quanto ao ordenamento da primitiva força criadora sob as leis da construção ...
No Prefácio de apresentação de uma antologia da poesia sensacionista portuguesa ao público britânico, escrita em 1916, Fernando Pessoa escreve: "Álvaro de Campos define-se excelentemente como sendo um Walt Whitman com um poeta grego lá dentro. Há nele toda a pujança de sensação intelectual, emocional e física que caraterizava Whitman; mas nele verifica-se o traço precisamente oposto - um poder de construção e de desenvolvimento ordenado de um poema que nenhum poeta depois de Milton jamais alcançou. A "Ode Marítima" de Álvaro de Campos [...] que ocupa nada menos de 22 páginas de Orpheu, é uma autêntica maravilha de organização." (5)
Assim como Álvaro de Campos escrevia Odes porém fossem ultramodernas, assim também Stravinsky via-se atraído pelas formas do barroco e do classicismo. De outra maneira, em outra linguagem, Igor também transforma as antigas formas revitalizando-as e dando-lhes um tratamento totalmente novo.
Harold Schonberg, no seu livro "Os grandes compositores", caracteriza a música de Stravinsky como sendo áspera, reservada, intelectual. Uma música na qual os elementos formais estão habilmente equilibrados.
Ele diz: "Grande parte do prazer de escutar a música de Stravinsky provém de que se compartilham os processos mentais de uma mente sobejamente organizada, uma mente que aliás, inclui uma medida considerável de audácia; uma mente fascinante, ingeniosa, aforística" (6). Para Stravinsky a música era essencialmente forma e lógica.
O sensacionismo de Campos rejeita do Romantismo - segundo Pessoa nos diz - "a sua teoria básica do momento da inspiração. Não crê que a obra deva ser produzida rapidamente, a não ser que o artista haja conseguido (como de facto alguns conseguem) de tal modo ter o espírito disciplinado que a obra nasça construindo-se". (7)
Para Stravinsky, a composição é um ato humano consciente. Conseguir a ordem e a unidade do elemento sonoro significa descobrir a medida adequada de subordinação do caos da dissonância à segurança da consonância. Assim, a escolha do material, da estrutura, dos instrumentos, da tonalidade era o primeiro a resolver. Uma vez escolhida, a ideia musical é submetida à sua claríssima e precisa disciplina estética. "Não posso compor - escreveu ele - até não ter determinado que problemas tenho que resolver" (8). A inspiração, nesta estética não tem muito espaço.
A música de Stravinsky é principalmente rítmica. Em geral, o seu ritmo é mais do que um simples acompanhamento, é protagonista. O compositor mistura ritmos assimétricos com metros invariáveis, pois a irregularidade, segundo ele, só adquire sentido se tiver como pano de fundo a regularidade.
A poética de Campos segue o compasso do seu pensamento. Mistura também os ritmos assimétricos da prosa, numa disposição ultramoderna que ele denomina Odes... O ritmo aqui também é protagonista. A escrita segue as inflexões duma mente hiperanalítica e de uma sensibilidade que sente tudo de todas as maneiras, por isso o ritmo é por momentos regular e, por outros, irregular; porque a realidade não pode consistir em faltar alguma destas possibilidades...
Álvaro de Campos é o timbale da orquestra pessoana. Ele é puro ritmo. É a força de uma onda que nasce, cresce, se avoluma e quebra. É o constante fluir de um murmúrio marítimo. É a batida forte, clara, limpa e profunda duma exclamação, de um grito. É dinamismo, em constante movimento. O seu percutir é por vezes o rítmico latejar do coração, símbolo da vida, do vitalismo que em verso nos demonstrou. Regularidade de uma máquina moderna, ímpeto, irregularidade, assimetria, contraste, Álvaro, tímpano.
A orquestração de Stravinsky é colorida e cheia de ásperas dissonâncias, e os instrumentos são utilizados de uma maneira diferente, criando texturas novas.
O mesmo faz Campos com as palavras. Mistura planos: as lembranças, as reflexões, a realidade. Quer ser duas coisas contrárias ao mesmo tempo, pirata e vítima... utiliza as palavras de maneira a criar imagens novas.
O especialista em Pessoa, Cabral Martins, já disse: "Campos é sempre em voz alta, portanto, quer sob a forma de canto, quer de grito, ou de surdina, ou de simples fala, está numa atitude de comunicação, transitiva, que tende, por todas as formas, a ser exteriorização pura" (9). E se ouvirmos a música de Stravinsky, poderíamos adaptar para ele a mesma caracterização.
Exemplo disto seriam as seguintes palavras que aparecem em
"Afinal,a melhor maneira de viajar é sentir" ...
"Sou um formidável dinamismo obrigado ao equilíbrio
De estar dentro do meu corpo, de não transbordar da minh'alma.
Ruge, estoira, vence, quebra, estrondeia, sacode,
Freme, treme, espuma, venta, viola, explode,
Perde-te, trascende-te, circunda-te, vive-te, rompe e foge,
Sê com todo o meu corpo todo o universo e a vida,
Arde com todo o meu ser todos os lumes e luzes.
Risca com toda a minha alma todos os relâmpagos e fogos,
Sobrevive-me em minha vida em todas as direções!" (10)
Por isso, com ou sem razão, a poética de Campos pode ser sentida dinamicamente... e produzir em nós a mesma sensação que nos produz a audição de uma música como A Consagração da Primavera de Stravinsky.
Pessoa, Fernando, Obra Poética, Ed. Nova Aguilar S.A., Rio de Janeiro, 1990, pág. 344.
Pessoa, Fernando, Obra Poética, Ed. Nova Aguilar S.A., Rio de Janeiro, 1990, pág. 325.
Pessoa, Fernando, Obra Poética, Ed. Nova Aguilar S.A., Rio de Janeiro, 1990, pág. 320.
Routh, Francis, Stravinsky, Javier Vergara Editor S.A., Buenos Aires, 1990, pág. 25. (A tradução é minha)
Pessoa, Fernando, Obra em prosa - Textos de intervenção social e cultural - A ficção dos heterónimos, Publicações Europa - América, Mem Martins, s/d, pág 83.
Schonberg, Harold C., Los grandes compositores, Javier Vergara Editor S.A., Buenos Aires, 1987, pág. 464. (A tradução é minha)
Pessoa, Fernando, Obra em prosa - Páginas sobre Literatura e Estética, Publicações Europa - América, Mem Mar tins, s/d, pág. 136.
Stravinsky, Igor, Poética Musical, Emecé Editores S.A., Buenos Aires, 1946 (A tradução é minha)
Cabral Martins, Poesias de Álvaro de Campos, Editorial Comunicação, Lisboa, 1986, pág.29.
Pessoa, Fernando, Obra Poética, Ed. Nova Agilar S.A., Rio de Janeiro, 1990, pág. 408.
Bibliografia
Cabral Martins, Poesias de Álvaro de Campos, Editorial Comunicação, Lisboa, 1986.
Kramer, Jonathan, Invitación a la música, Javier Vergara Editor S.A., Buenos Aires, 1993.
Pessoa, Fernando, Obra em prosa - Páginas sobre Literatura e Estética, Publicações Europa - América, Mem Martins, s/d.
Pessoa, Fernando, Obra em prosa - Textos de intervenção social e cultural - A ficção dos heterónimos, Publicações Europa - América, Mem Martins, s/d.
Pessoa, Fernando, Obra Poética, Ed. Nova Aguilar S.A., Rio de Janeiro, 1990.
Routh, Francis, Stravinsky, Javier Vergara Editor S.A., Buenos Aires, 1990.
Schonberg, Harold C., Los grandes compositores, Javier Vergara Editor S.A., Buenos Aires, 1987.
Stravinsky, Igor, Poética Musical, Emecé Editores S.A., Buenos Aires, 1946.
*Alejandra Leoni é professora de português, formada pelo IES em Línguas Vivas "Juan R. Fernández". Iniciou a especialização na área de literatura com o trabalho Fernando Pessoa: o "Supra-Camões” da literatura portuguesa, realizado sob a orientação do Prof. Fernando J.B. Martinho na Faculdade de Letras de Lisboa, e continuou aprofundando nos estudos da área até a atualidade. Obteve o Diploma Superior em Ciências Sociais com orientação em Leitura, Escrita e Educação, pela “Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales (FLACSO)” - Sede Argentina.
Até dezembro de 2022, data de sua aposentadoria, desenvolveu-se como professora de Literatura Portuguesa no Línguas Vivas "Juan R. Fernández" e de Literaturas em Língua Portuguesa e Seminários de Literatura em Língua Portuguesa na ENS em Línguas Vivas “Sofía Broquen de Spangenberg”, além de outras disciplinas.
Na atualidade continua pesquisando, dá conferências no âmbito de sua especialização, participa em eventos culturais junto com as Comunidades Portuguesas da República Argentina e é examinadora do Centro de Avaliação de Português Língua Estrangeira (CAPLE) em Buenos Aires.




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