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Mulheres Quilombolas Líderes. História e desafios

A aluna do curso Superior de Formação de Professores de Português da “ENS en Lenguas Vivas Sofía Spangenberg”, Laura Signorelli, apresenta uma síntese do ensaio elaborado para o Seminário de Cultura dos Povos de Língua Portuguesa II sobre a Liderança feminina nas comunidades quilombolas. No seu texto reflete, do ponto de vista histórico e social, o lugar da mulher, nomeadamente, da mulher negra quilombola na atualidade. Na analise do assunto, utilizaram-se conceitos como gênero, raça, interseccionalidade e discriminação, entre outros.

 
Mulheres Quilombolas Líderes. História e desafios

Por Laura Signorelli


Quando se fala sobre a história do Brasil sempre se encontra, em maior ou menor medida, alguma referência aos quilombos e seus líderes. No entanto, nesses relatos e textos não existem detalhes ou referências sobre as mulheres negras quilombolas que formaram parte, qual foi seu papel, suas lutas, seus sacrifícios. Não só as regras gramaticais apagam sua existência quando se pluraliza o discurso, senão que sistematicamente no Brasil, como no resto dos países da América Latina, as mulheres foram invisibilizadas da história e do processo de construção das nações.

Este artigo pretende recuperar parte dessa história sobre as mulheres quilombolas. Inicialmente será descrito brevemente como eram os quilombos, sua relação com a cultura africana, sua organização e o papel das primeiras mulheres negras, de que existe registro na participação dessas comunidades, para depois aprofundar na situação atual onde se descreve qual é o papel que elas ocupam hoje, sua contribuição à cultura Brasileira e os desafios que enfrentam. Para desenvolver estas ideias se dará voz às protagonistas colocando exemplos e relatos de mulheres que hoje são líderes quilombolas nos diferentes estados do Brasil.


Contexto Histórico e Surgimento da Figura da Mulher Quilombola


A descoberta do Brasil foi feita no ano 1500, 35 anos depois, chegaria o primeiro navio com negros e negras escravizadas da África. O período de escravização do Brasil se prolongou por 353 anos e um dos objetivos desse sistema era desumanizar as pessoas negras para que pudessem ser vistos como um recurso. Durante esses três séculos existiram entre 6 e 10 gerações, ou em alguns casos mais, de pessoas nascidas escravas. Este dado é relevante, porque as pessoas que eram trazidas da África conheciam outra realidade e forma de vida, no entanto, as nascidas dentro do sistema escravista já perdiam inclusive essa visão.

Neste contexto colonial de submetimento exercido pelo homem branco é que surge o quilombo como única alternativa de contestação coletiva ao sistema escravista. As pessoas que conseguiam escapar dos latifúndios se organizavam em espaços escondidos entre as matas para tentar construir uma forma de vida diferente. O quilombo por sua natureza se converteu em um espaço de resistência.

Em relação ao papel da mulher, pode se dizer que os quilombos não eram espaços que tinham apenas referências masculinas em sua organização. As mulheres eram essenciais para sua estruturação, desenvolvimento e luta. Deve-se considerar que a organização que existia nos quilombos já tinha suas origens na África, onde o lugar da mulher era de maior relevância. Como fala Vânia Maria Da Silva Bomfim no livro Afrocentricidades:


Com efeito, em cerca do 8000 a.C.-a partir do início da revolução agrária do Neolítico-, as populações africanas se organizaram em complexas sociedades, nas quais a primazia na ordem social correspondia a mulher. Essa primazia, que em muitos casos se mantém intacta até hoje na África, apesar das grandes mudanças ocorridas ao longo da história (colonização, tráfico negreiro atlântico, e assim por diante), constitui-se como uma caraterística marcante das civilizações africanas.
Até o advento do islã e do cristianismo na África, a maioria das sociedades africanas era matricêntrica, a saber, matrilineares e matrifocais, embora num contexto de hegemonia masculina no campo militar e político. Essa força no universo feminino é um indício de quanto a posição social da mulher era elevada. (2009: 223-224)

Dentre os exemplos mais significativos de mulheres líderes quilombolas destacam-se:


  1. Acotirene dos Palmares: foi uma das primeiras mulheres a habitar os povoados quilombolas e foi a matriarca do quilombo, exercia a função de mãe e conselheira dos/as primeiros/as negros/as refugiados. Segundo a oralidade perpassada de pais para filhos, devido que houve poucos registros documentais, ela foi uma das primeiras mulheres a habitar os povoados quilombolas, antes de Ganga-Zumba assumir o poder.

  2. Dandara dos Palmares: Esposa de Zumbi. Teve um papel importante na condução do quilombo de Zumbi e na integração da sociedade de maneira harmônica. Participou ativamente da elaboração de estratégias de resistência do quilombo.

  3. Tereza de Benguela, conhecida também como Tereza do Quaritere, líder do Quilombo do Quariterê, o maior de Mato Grosso. Após a morte do seu marido, ela se tornou a líder e resistiu por mais de duas décadas. Era chamada de “Rainha Tereza” ou rainha. Foi conhecida por unir negros e indígenas para defender o território onde viviam. Comandou a estrutura política, econômica e administrativa da comunidade e criou uma estrutura semelhante à de um parlamento e reforçou a defesa do quilombo com armas adquiridas a partir de trocas com brancos ou deixadas por eles após conflitos. Devido a sua história e conquistas, desde 2014, o Brasil celebra, no dia 25 de julho, o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra.

Além destes três casos emblemáticos, existiram outras mulheres quilombolas que marcaram a diferença na história: Luiza Mahin liderou a Revolta dos Malês, Zeferina que liderou o quilombo do Urubu (Salvador) e Adelina Charuteira, maranhense, que teve um importante papel no movimento abolicionista do Maranhão, entre outras.


Transição do Papel da Mulher Negra na Sociedade Brasileira.


Neste contexto, observa-se como a mulher negra era protagonista nos quilombos e, portanto, também direta ou indiretamente era uma figura importante, embora invisibilizada, para o surgimento e o desenvolvimento da sociedade afro-brasileira.

No entanto, a realidade da mulher negra no Brasil fora do quilombo era diferente, totalmente desvalorizada, só era trazida pelos colonos com três objetivos: brindar serviço doméstico ou cuidar das crianças, satisfazer sexualmente aos homens brancos e produzir mais escravos. A tortura e o estupro eram práticas naturalizadas para os donos.

Imersos numa sociedade dessas características, a função das mulheres dentro dos quilombos também foi mudando. As práticas patriarcais próprias das religiões cristãs e das sociedades europeias também tiveram influência nas comunidades quilombolas, e mesmo tendo representações femininas, existiram muitos casos em que a mulher dentro do quilombo também estava limitada e dominada.

Depois da abolição da escravidão, muito dos homens que habitavam os quilombos migraram as cidades com o fim de trabalhar e procurar um futuro diferente. As mulheres também tentaram migrar, mas suas opções eram limitadas e muitas decidiram ficar e recuperar os espaços de liderança procurando alternativas para que a comunidade conseguisse subsistir e conservar sua forma de vida

O racismo estrutural que existia e que ainda perdura no Brasil, combinado com as teorias de supremacia racial da época e a falta de criação de direitos sociais, não permitiu que os libertos e libertas tivessem um desenvolvimento natural dentro da sociedade e continuaram sendo afastados e discriminados. As histórias de valentia e revoltas de resistência por parte da população negra foram apagadas da história oficial, os quilombos eram apresentados como lugares perigosos onde fugiam malandras e “pessoas do mal” e as gerações afrodescendentes seguintes não encontrariam nenhuma referência positiva sobre seu povo e suas origens.


O quilombo, nesse contexto, passou a ser um espaço de resistência da cultura afro-brasileira, um dos poucos lugares onde por meio do relato se conservou a história original, os costumes e as tradições.


Os Quilombos na Atualidade e Os Desafios das Mulheres Líderes nos Quilombos.


A partir da constituição de 1988, devido aos reclamos dos movimentos feministas e comunidades quilombolas, entre outras associações de DDHH, foram incluídos pela primeira vez, direitos para as comunidades quilombolas e indígenas, o Brasil começou então, um caminho de recuperação histórica que ainda está em andamento.

Como resultado de todo o processo de formação do país e destas mudanças mais recentes, podemos reconhecer que hoje os e as líderes quilombolas compartilham novos desafios, os principais são:


1- Que o próprio quilombola recupere sua identidade e se assuma quilombola.

2- Que sejam reconhecidos como donos e proprietários das suas terras.

3- Que o estado garanta e respeite os direitos que já foram definidos.

4- Que sejam criados direitos pensados para as necessidades e especificidades da população quilombola para que tenham uma melhor qualidade de vida e um acesso às oportunidades (desenvolvimento pessoal, econômico, profissional) de forma mais equitativa.

5- Que se combata o racismo e os preconceitos que existem sobre sua forma de viver.


Porém, no caso da liderança feminina, as mulheres quilombolas têm alguns desafios extras como consequência da interseccionalidade que as atravessa, considerando a interseccionalidade como “um sistema de opressão interligado” (Akotirene, 2018:15). Isto quer dizer que, por sua condição de raça, gênero, identidade e classe social são muito mais oprimidas que outros e praticamente não têm nenhum privilégio ou facilidade dentro da sociedade.

Baseados nisto, podemos nomear os seguintes desafios extras:


1- Quebrar com os estereótipos que lhe foram inculcados desde criança e autoperceber-se como uma mulher empoderada. Realmente acreditar que pode ser líder para começar ou continuar ocupando espaços estratégicos.

2- Assumir que qualquer autoridade, seja governamental, policial ou social, questionará suas capacidades só por sua condição de gênero e raça. Terá que justificar e comprovar com atos, de forma constante, porque ocupa esse espaço. Terá barreiras extras.

3- Sobreviver e enfrentar a violência machista em geral, não só o fato de ser questionada, senão a violência explícita. Por exemplo, o assédio verbal e físico.


Os pontos mencionados anteriormente estão refletidos nos relatos de mulheres que atualmente são líderes e referentes das suas comunidades. A seguir alguns exemplos desses desafios nas vozes de quatro mulheres:

Relato de Tuquinha, líder no quilombo Chacrinha dos Pretos em relação ao processo de empoderamento que passa uma mulher:

Eu nem percebi que estava na frente de tudo. Porque é que o que acontecia, eu ficava quietinha na minha casa trabalhando e tal, e meu marido era o presidente da associação. Ai o mandato dele venceu, (...) ninguém queria ser presidente, achavam que era uma responsabilidade muito grande. E ai ele falou assim, você vai entrar. E aí eu falei assim, euuuu, eu não dou conta disso não. E ai ele falou assim, você vai entra e eu vou te ajudar.
Aí eu entrei no começo do 2008, abril do 2008, e ai ele faleceu em junho, julho de 2008.
Ai que acontece, eu fiquei com depressão, e aí eu não fazia nada (...) a associação estava parada, né?, Não posso deixar, não tinha nada. Aí fui para a associação aí trabalhando, trabalhando, a gente começou correndo atrás de muitos diretos nos que a gente não sabia, e aí eu gostei muito porque aprendi muita coisa. Aí eu fazia tudo, viajava, planejava. Às vezes fazia, eu acho engraçado, às vezes eu trabalhando pra mim, ainda fazia artesanato pra vender e participava das coisas da associação, tudo ao mesmo tempo! E a depressão foi embora. (Transcrição fiel do relato de Tuquinha Fernandes e Fernandes: 2015: 21'00" a 22' 40")

Relato de Nilma, Lino Gomes, professora titular da faculdade de educação da UFMG, na reflexão inicial do livro Mulheres quilombolas: territórios de existências negras femininas comentaa importância de contar a sua própria história:


As mulheres quilombolas constroem conhecimentos que emancipam a elas mesmas e as outras pessoas do quilombo. Compreendem a importância política e jurídica do território e da terra, bem como a sua força vital nas construções das identidades quilombolas as quais se afirmam por meio das lutas cotidianas contra toda sorte de opressão. (dos Santos, 2020:4 e 5)

Marilene integrante do quilombo Mato do Tição, também faz menção aos desafios da figura feminina e quilombola:

Temos que pensar que mesmo, com todas as dificuldades esses obstáculos, somos capaz e que depende de cada um de nós, então, falta conhecimento? falta, mas vamos buscar esse conhecimento. (...)
Tem que ter mesmo coragem para lutar, que às vezes porque uma mulher tá aí falando e eu já tive momento que aaa eu decidi ignorar (...) será porque não estão me vendo, quem sabe, não me está ouvindo? será por que sou uma figura feminina e então, estão ignorando minha voz? Sabe? Mas não faço caso não, e ai pensa, nossa puxa a vida eu já caminhei até aqui será que vai ser agradável parar aqui ou desistir? o caminho para voltar tá muito mais logo do que tá para chegar lá, ai você dá uma respirada, consegue voltar. É bem estimulante mesmo, essa questão de você tá ai como referente, de frente, você ter, sentir a obrigação de estar articulando, ai você pensa desistir jamais, vou seguir. E aí, eu gosto muito de trabalhar pra a comunidade com a comunidade, principalmente agora com as mulheres, estar envolvida mesmo e tal, é bem agradável para nós que somos mulheres. Mas nós temos história, sabemos de onde viemos e onde estamos, e sabemos para onde vamos. (Transcrição fiel do relato de Marilene, Fernandes e Fernandes, 2015: 15'35"a 15'37")

Finalmente, as palavras de Maria Abade, liderança quilombola, da comunidade do Engenho da Ponte, em Cachoeira, numa entrevista realizada para o jornal “Brasil de fato” sobre os desafios contra uma cultura machista exprime:

Minha experiência de mulher negra, agricultora e pescadora é de muita luta e resistência. Porque a maioria das comunidades tradicionais, especificamente a comunidade quilombola, porque essa é a minha vivência, tem como lideranças homens. E esses homens vêm de um processo muito deles machistas. Então para mim é uma vivência de resistência ter uma mulher negra a frente de uma comunidade quilombola. Se eu disser a você que é fácil, não é. Porque a gente tem que estar nessa resistência, nessa lida o tempo todo. E quando a gente não se submete a esse sistema patriarcal, perverso e machista, a gente sofre as repressões e não são poucas. E, às vezes, as pessoas perguntam “e o que faz tu permanecer”? O que me faz permanecer nessa luta e nessa resistência é a luta de minhas antepassadas, porque quando a gente vê em pleno século XXI o que eu ainda passo e o que companheiras minhas passam para resistir nesses espaços de decisão, a gente tem obrigação de seguir. Não podemos desistir, e além de minha gratidão aos antepassados, também tenho obrigação de tentar seguir esse caminho enquanto estiver aqui, para que os que estão vindo depois de mim. Então essa é a minha experiência, muitas vezes de alegria, mas muitas vezes angustiante, porque a gente tem que preservar a memória daquelas que passaram e deixaram um legado, uma história de luta, de resistência, de bravura. Mas ser mulher negra nesse sistema atual é muito difícil. Porque você tem que estar pronta e armada para a luta o tempo todo. Ser mulher negra quilombola é viver numa opressão diária. (Araújo, 2019)

A recuperação histórica dos quilombos e da cultura afro-brasileira que começou a acontecer a partir da constituição de 1988 é o fruto do trabalho destas e outras líderes quilombolas na preservação desses relatos e na resistência nas funções de lideranças ou como referentes. Atualmente, o quilombo liderado por uma mulher, além de ser um símbolo de resistência da cultura afro-brasileira, também representa a resistência à sociedade patriarcal.



Conclusões Finais

A mulher quilombola é símbolo de resistência por excelência. Aversão a um sistema opressor onde coloca a mulher negra e quilombola num lugar de maior vulnerabilidade e com menos acesso aos direitos mínimos e necessários para ter uma vida de qualidade. Por causa da interseccionalidade é duplamente oprimida e nas escalas de privilégios sociais está até o final, na base.

O fato de sobreviver já é um ato de resistência, porém quando essas mulheres quilombolas ocupam uma posição de liderança estão quebrando padrões, demonstram por meio das suas existências, das suas conquistas e suas capacidades que podem guiar uma comunidade e fazem visível a luta e a discriminação racial e de gênero que existe nas sociedades.

A importância do seu papel na sociedade atual é fundamental, exemplifica de forma tangível como uma mulher que lidera e conserva nos seus costumes e relatos a origem da história afro-brasileira, por um lado, é a encarregada de continuar transpassando às próximas gerações esse saber para que os e as jovens possam se identificar e, pelo outro, é protagonista e responsável de procurar novos direitos da sua visão única.

A discriminação de gênero e o racismo estão dentro das principais problemáticas que existem nas sociedades atuais e conhecer como se originam e os efeitos que trazem nas pessoas permite criar consciência, entender a diversidade humana e mudar para uma sociedade mais equitativa e inclusiva.


 

BIBLIOGRAFIA

-Achados e Pedidos, Direito à Terra Quilombola em Risco, (2021) FORDFOUDATION. Disponível em: https://www.achadosepedidos.org.br/uploads/publicacoes/Terra_Quilombola.pdf

Acesso 6 de julho 2022

- AKOTIRENE, C. (2019) Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen

-ARAÚJO, J. (2019). "O maior desafio das mulheres negras nesse momento é viver” em Brasil de fato. Disponível em:

- DE CARVALHO, J.M. (2008). Cidadania no Brasil- O Longo Caminho, 10º ed., Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira.

-DEALDINA, S. dos S. (org.). (2020) Mulheres quilombolas: territórios de existências negras femininas. São Paulo: Jandaíra, Selo Sueli Carneiro.

-FERNANDES E FERNANDES (realizadoras) (2015) Dandaras. A Força da Mulher Quilombola. Arquivo de Vídeo: Disponível em:

- FRANCO, A. (2021). “Desafios da Luta Quilombola no Brasil: Como as Comunidades se Articulam pela Garantia dos seus Direitos”. Disponível em:

- Instituto Brasileiro de Geografia e Estadística. (2020). Dimensionamento Emergencial de População Residente em Áreas Indígenas e Quilombolas para Ações de Enfrentamento à Pandemia Provocada pelo Coronavírus.

- NASCIMENTO E. L. (org). (2009). Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo :Selo Negro.

- ONU. (2017). Artigo “Mulheres quilombolas: liderança e resistência para combater a invisibilidade”. Disponível em:


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Félix Vallotton, Public domain, via Wikimedia Commons


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