Bárbara Nayla Piñeiro de Castro Pessôa é leitora do Brasil na Universidade de Córdoba, compartilha com a comunidade da LuSofia uma homenagem à grande Clarice Lispector no ano de seu centenário.
Conversas sobre Clarice: homenagem ao seu centenário (1920-1977)
Bárbara Nayla Piñeiro de Castro Pessôa
Clarice Lispector constitui uma das vozes literárias mais singulares e potentes da literatura brasileira. Especialmente lida e amplamente traduzida na Argentina, poderíamos dizer que a recepção de Clarice Lispector no país se diferencia da limitada repercussão que a literatura brasileira costuma ter nos países de fala hispana. Esta recepção incitou o Programa de Leitorados Brasileiros em Córdoba a propor uma comemoração do centenário da escritora que fosse também uma oportunidade fecunda de reunir e por em diálogo alunos e professores de português de diferentes regiões da Argentina. Dedicado à promoção da língua e cultura do Brasil, o Programa de Leitorados Brasileiros é uma ação do governo brasileiro que funciona através de convênio entre o Ministério das Relações Exteriores do Brasil (MRE) e universidades do exterior. No caso do leitorado na cidade de Córdoba, esta parceria foi feita com a prestigiosa e antiga Universidade de Córdoba.
Com o apoio da organização da Secretaria de Extensão da Facultad de Lenguas desta universidade e o encontro com este espaço de interesse tão vivo pelo trabalho de Clarice Lispector, idealizamos esta oportunidade de integrar e fortalecer a comunidade de alunos e professores de português no país e colocar em diálogo diferentes e importantes atores do ensino e aprendizagem de nossa língua e cultura na Argentina. Contamos com a fundamental colaboração e participação das importantes instituições de Formação de Professores de Português da Faculdad de Lenguas da Universidade de Córdoba, da Formação de Professores de Português e Tradutorado do Instituto Superior Lenguas Vivas “Juan Ramón Fernández”, da Escuela Normal Superior en Lenguas Vivas Sofía B. de Spangenberg, de Buenos Aires, e da Universidade do Pampa de Bagé, Rio Grande do Sul.
A constituição do grupo de professores convidados a conduzir o diálogo também respondeu a esta intenção de reunir trajetórias e origens diversas do ensino de português na Argentina, apostando na contribuição inestimável de tal heterogeneidade e da excelência acadêmica destes professores. Assim surgiu “Conversas sobre Clarice, Homenagem ao Centenário de Clarice Lispector (1920-1977)”, apostando em um encontro que fosse simultaneamente celebratório, formativo e de integração.
A dinâmica dos encontros se deu a partir da leitura em voz alta dos textos e das perguntas disparadoras que os professores propuseram aos alunos, de modo que a leitura feita previamente revelasse o processo de leitura realizado e pudesse articular-se a aspectos centrais da obra da escritora. Através da mediação do professor, os alunos foram construindo uma leitura conjunta e uma plataforma crítica sobre os textos.
O primeiro encontro: “Para leitores distraídos, à procura de Clarice Lispector” foi por mim conduzido enquanto leitora do Brasil na Universidade de Córdoba. Este encontro foi pensado de forma a apresentar aspectos centrais do trabalho de Clarice Lispector, especialmente os temas da literatura e vida cotidiana, da alteridade e sua relação com a nomeação, além de situar brevemente o lugar de Clarice Lispector na literatura brasileira. Neste encontro lemos e conversamos sobre os textos: “A menor mulher do mundo”, do livro Laços de Família (1960), “Por não estarem distraídos”, “A pesca milagrosa” e “Como se chama”, reunidos no livro Para não esquecer (1978) de Clarice Lispector.
O segundo encontro “Questões brasileiras na perspectiva de Clarice Lispector”, conduzido pela Dra.Vera Lúcia Cardoso Medeiros da Unipampa, trabalhou os temas da representação das relações sociais no Brasil do século XX; a introspecção e a representação da sociedade através da discussão dos textos: "Amor", do livro Laços de família (1960), e "A bela e a fera e a ferida grande demais” do livro póstumo A bela e a fera (1978).
O terceiro encontro “Mineirinho e a crítica da violência”, conduzido pelo Dr. Miguel Koleff da Universidade Nacional de Córdoba, tratou do tema da crítica da violência em Clarice Lispector, partindo do texto “Mineirinho” do livro “Para não Esquecer” (1978) e ampliando o debate através da discussão sobre o assunto na contemporaneidade, trazendo para a conversa algumas ideas de Walter Benjamin e Byung-Chul Han.
O quarto encontro ““Ideias Fabulosas: A linguagem literária clariceana”, conduzido pela Ma. Caroline Kirsch Pfeifer da Universidade de La Plata e do Instituto Superior Lenguas Vivas “Juan Ramón Fernandez”, tratou da intertextualidade entre a obra infantil e adulta de Clarice Lispector, trabalhando os textos “O mistério do coelho pensante” (1967) e “A Fuga” (1979). A professora também comentou sobre diferentes traduções e edições para o espanhol dos livros infantis da escritora em questão.
Cada encontro contribuiu para uma abordagem e entrada diferente à obra de Clarice Lispector. Cada conversa fez surgir ressonâncias entre as questões levantadas, fazendo com que tívessemos a oportunidade de constituir um espaço que fosse ao mesmo tempo espaço de prática e celebração da língua, espaço de formação de leitura literária e, como deve ser, espaço que irradia e se abre em campo fértil de aprendizagem de questões culturais que apontam à realidade brasileira, mas que também trazem à tona questões que dialogam com o nosso contexto argentino e latino-americano.
Nosso público participante pertence a diferentes instituições de ensino de português da Argentina, tais como à Universidad Nacional del Nordeste em Corrientes, institutos de ensino de Português como Língua Estrangeira de Jujuy, à Universidad Nacional Litoral, à Universidad Nacional de Rosario em Santa Fé, à Universidad Autónoma de Entre Ríos em Entre Ríos, a Universidad Nacional de Misiones, USAL, Instituto Superior Lenguas Vivas e Instituto Universitario de Seguridad Marítima em Misiones, à Universidad Nacional de Formosa em Formosa, à Universidad Nacional de Cuyo em Mendoza, à Universidad Nacional de La Plata em Buenos Aires e ao Colégio Secundario Zampieri y Quaglini de General Pico em La Pampa. No total, foram 10 estados participantes: Córdoba, Corrientes, Misiones, La Pampa, Entre Ríos, Santa Fe, Mendoza, Jujuy, Formosa e Buenos Aires.
Foi também através da conversa com estes alunos das mais variadas partes da Argentina, das contribuições que surgiam das suas leituras, que a trama crítica que estudamos foi ganhando corpo e voz. Isso porque o campo literário, como já foi dito, é um espaço privilegiado para discutir não só aspectos próprios dos processos culturais pertencentes ao universo de origem do texto literário, mas também para gerar intercâmbios, ressonâncias e integração com os contextos que recebem e fazem estas leituras.
Se função mesma da literatura está vinculada a sua natureza múltipla – natureza autônoma em sua estrutura e significado, forma de expressão de indivíduos e grupos e também forma de conhecimento, como bem nos ensinou Antonio Candido (CANDIDO, 2011, p.76) –, a complexidade do objeto literário se inscreve simultaneamente em sua especificidade lingüística e em seu caráter de expressão e conhecimento social. No contexto da prática literária para alunos de PLE, entende-se que o professor deve valorizar e incentivar o processo ativo de descoberta do texto do próprio aluno ao mesmo tempo em que deve orientar esse processo, enfatizando as especificidades linguísticas e culturais que o caracterizam, sabendo percorrer a dinâmica que vai da especificidade do texto literário ao seu contexto, de seu contexto ao contexto que nos compreende.
Também destacamos a importância de abrir caminhos de discussão comparativa que permita que o diálogo entre culturas se realize. As práticas de leitura se constituem como um lugar de produção de sentido, de compreensão e aproximação afetiva à língua estrangeira, confluências centrais para a formação do profissional da área. Segundo Michelle Pétit:
Não se deve confundir elaboração da subjetividade com individualismo, nem tampouco sociabilidade com gregarismo. Ler não nos separa do mundo. Somos introduzidos nele de maneira diferente. O mais íntimo tem a ver com o mais universal, e isso modifica a relação com os outros. A leitura pode contribuir desse modo para a elaboração de uma identidade que não se baseia no mero antagonismo entre eles e nós, minha etnia contra a sua, meu clã, meu povo, meu território contra o seu. Pode ajudar a elaborar uma identidade em que não se está reduzido apenas a laços de pertencimentos, mesmo quando se tem orgulho deles e levar à construção de uma identidade plural, mais flexível, mais adaptável, aberta ao jogo e às mudanças (PETIT, 2013, p.55).
No contexto de uma ação de difusão da língua e cultura estrangeiras que se realiza necessariamente pela abertura ao diálogo e ao conhecimento mútuos, a prática de leitura se torna central, prática única para pensar a cultura do outro como um lugar aberto e plural, um lugar onde podemos refletir e aprender sobre nossa própria cultura. “Conversas sobre Clarice” e o entusiasmo de seus participantes nos ajudou a entender ainda mais que Clarice Lispector pode ser vista como um elo insuspeito de ligação entre nossas culturas e que a literatura é verdadeiramente um espaço no qual as trocas simbólicas se dão de forma mais potente, valiosa e instigante.
Referências
CANDIDO, Antonio. “O direito à literatura”. IN: Vários escritos. 5 ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Duas cidades/Ouro sobre Azul, 2011.
PETIT, Michèle. Leituras: do espaço íntimo ao espaço público. Tradução de Celina Olga de Souza. São Paulo: Espaço 34, 2013.
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