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Foto del escritorM. Fernanda de Sousa Tomé

Portugal na modernidade, o precursor da globalização


A docente María Fernanda de Souza Tomé -professora de Cultura e História Portuguesa no curso de Formação de Professores de PLE da ENSLV Sofia Spangenberg– analisa questões históricas que colocam Portugal como uma nação precursora nas dinâmicas socio econômicas e políticas do fenômeno da globalização.

"El cielo de Belén" - Desenho digital realizado por Guillermo Vidal

"El cielo de Belén" - Por: Guillermo Vidal (ilustrador e artista digital formado com experiência em produções gráficas editoriais, capas de livro, etc.) Clique aqui para ler informações do desenho.

 

Portugal na modernidade, o precursor da globalização [1]

Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.

Deus quis que a terra fosse toda uma,

Que o mar unisse, já não separasse.

Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,

E a orla branca foi de ilha em continente,

Clareou, correndo, até ao fim do mundo,

E viu-se a terra inteira, de repente,

Surgir, redonda, do azul profundo[1].

[1] Duas estrofes do terceiro poema, “O Infante” da Segunda Parte Mar Portuguêz da obra épica de Fernando Pessoa, MENSAGEM. O infante D. Henrique representa a figura chave na expansão ultramarina, como iniciador e sonhador de um Império, o único imperador que tem deveras/ o globo mundo em sua mão.

[2] Os conceitos de este artigo são elaborados a partir dos trabalhos realizados no Curso à distância do IC: Estudos Pós-coloniais: Atlânticos Sul, 1.ª edição- 2008- 2009


Analisar o fenómeno da globalização, nos novos tempos históricos, tornou-se uma questão essencial para a construção e para a interpretação das identidades individuais, colectivas, nacionais, regionais, etc. O sujeito moderno vai confrontando-se no contacto permanente com variadas formas e práticas culturais. Essas práticas ligadas, inicialmente a um tempo e a um espaço, sofreram transformações, deslocamentos e renovações. Os fluxos culturais que as novas formas de comunicação e as imagens da mídia apresentam, são de uma incontestabilidade e de um impacto nas nossas identidades, que permanentemente promovem debates. Espaço e tempo colocam-se como variáveis e dimensões relativas, e essa relatividade arrasta com eles, as identidades fortemente ligadas a um território e a uma narrativa histórica.


Alguns teóricos argumentam que o efeito geral desses processos globais tem sido o de enfraquecer ou solapar formas nacionais de identidade cultural. Eles argumentam que existem evidências de um afrouxamento de fortes identificações com a cultura nacional e um reforçamento de outros laços e lealdades culturais (Hall, 2000, p.73)


Esta questão, que parece especialmente ligada à modernidade tecnológica, ao séculos XX e XXI e às possibilidades de interconexão do planeta através das redes sociais, da circulação de homens, bens, serviços, tecnologia, produtos, etc, não é privativa destes tempos. Na verdade, na história mundial, o antecedente histórico da expansão portuguesa, é claramente um desses fenómenos. Nessa perspectiva, o presente artigo tentará reflectir sobre essa primeira globalização instalada na modernidade dos séculos XV e XVI, a escala planetária, isto é, a globalização do mundo inaugurada por Portugal.


Não é possível, hoje, considerar culturas homogéneas, nem puras (Homi Bhabba, 1994, 21), deveríamos falar em culturas híbridas, plurais e sincréticas. Em geral, são todos conceitos ligados ao processo de contactos, de imposição e de difusão cultural, aliás, de carácter compulsório, na maioria das vezes. Seguindo essa linha, ao analisar Portugal como agente colonizador, no início da modernidade, poder-se-iam detalhar questões da sua especificidade colonial, salientar as suas peculiaridades, reflexionar sobre o papel da língua. Contudo, este breve trabalho é um início de reflexão na procura de expor o lugar de Portugal como primeiro operador do processo de interculturalidade global.


De maneira sucinta, apresentar-se-ão algumas referências ao percurso das ligações intercontinentais que foram desenhadas como uma urdidura pelos navios de origem lusitana que do Japão até ao Brasil traçavam estradas no mar não só carregadas de mercadorias. Portugal foi a potência pioneira a lançar-se na expansão ultramarina e aliás, como coloca Boaventura Sousa Santos “a que manteve por mais tempo seu império” (2006, p. 237).


Segundo Isabel Castro Henriques, Portugal tornou-se um protagonista “chave” no prelúdio da globalização conhecida nos nossos dias e da “construção do mundo contemporâneo” (Henriques, 2004, p.103). Os portugueses foram os responsáveis dessa inicial transformação na história da humanidade e os criadores dum tempo moderno, em que várias culturas começaram a se entrelaçar e atravessar no contexto do empreendimento mercantil iniciado no século XV. Esta autora assinala a importância do oceano Atlântico nesta empresa. A universalidade que adquiriu o espaço atlântico, apesar de sua matriz de origem económica, atingiu dimensões políticas, sociais e religiosas que transformaram o mundo através da transferência de humanidades, modelos e culturas.


Para um certo número de historiadores, a história moderna começaria entre os séculos XV e XVI quando europeus e mais particularmente os portugueses, começaram a aventurar-se no Atlântico, perdendo a costa de vista, afrontando o mar livre enfim das barreiras terrestres. (Castro Henriques, 2004, p.107)


Assim, o mar conforma, simbolicamente, o palco da modernidade pelo seu papel de viabilizador-veículo de contacto de culturas longínquas, diferenciadas e desconhecidas. Nesse contexto, surge a escravidão como componente estrutural de toda a empresa colonizadora que inaugurou o mundo moderno no séc. XV e o Atlântico é o mar não só das viagens e das descobertas, mas sim do tráfico, das trocas e da criação de sociedades diferenciadas com paradigmas diferentes aos conhecidos. Nessa construção, o oceano Atlântico funcionou como espaço aglutinante-difusor-derivador dum mundo novo que transferia homens, animais, plantas, costumes, crenças, etc. a escala mundial.


A primeira experiência colonial, no início da expansão marítima, praticada pelos portugueses no oceano Índico, de carácter pontual e mercantil, i.e., fundamentalmente económica, transladou-se, mais tarde, para o oceano Atlântico de maneira aprofundada, diversa e persistente, reforçando os objectivos políticos e religiosos. As margens do Atlântico, a africana e a americana, com diversas origens e culturas, tiveram diferentes modelos de colonização, e essa situação torna evidente as actuais características do pós-colonialismo de origem portuguesa.


O império colonial cujo epicentro simbólico estava no alto-mar do Atlântico Sul, após a Restauração no século XVII, estabelece dois modelos, enquanto na margem ocidental instaura uma sociedade colonial, na margem oriental do Atlântico, instala feitorias e pequenos núcleos, funcionando apenas, inicialmente, como passagem para o império do Oriente. Mais tarde, a África, tornar-se um agente passivo e fornecedor de mão-de-obra para América. A clara subordinação ao Brasil, fez com que a África vivesse séculos de exploração e sumição. É evidente que a colónia americana era o centro do esquema colonial português, baseado no latifúndio, na monocultura e na produção para o mercado externo, o trabalho escravo completava essa tetralogia inabalável. Dessa maneira, o homem torna-se um bem semovente fundamental e a mais importante “mercadoria” que a África fornecia. A complementaridade entre as colónias era de carácter, marcadamente, desigual, como assinala Luiz Felipe de Alencastro (2000).


Nessa era global, surgiu uma maciça miscigenação intercontinental entre a América, a África, a Europa e a Ásia. Contudo, é o continente americano o maior berço desse processo universal único, e nomeadamente, o Brasil é o exemplo de criação duma humanidade nova. Para Boaventura de Sousa Santos, a indecidibilidade do colonialismo português reflecte a presença de infinitas manifestações de interacção e da existência de um regime de interindentidades (Cf. 2006, p.238). Este autor detalha os processos de cafrealização, assimilação, miscigenação que são claramente “manifestações da porosidade dos regimes identitários dos portugueses” (Santos. 2006, p. 236)


Assim, o Brasil, é um exemplo desse “jogo de espelhos” ao dizer de Sousa Santos, pois conforma uma nação cuja identidade plural é única na América e no mundo. Apesar de estar muito longe duma democracia racial como alguns brasileiros preconizam; a mestiçagem racial e cultural, caldeada na colónia, criou uma sociedade “semi integrada”, na qual a miscigenação fez surgir uma cultura nova, com elementos inclusivos dos três continentes banhados pelo Atlântico, porém, é importante destacar que a cultura autóctone foi amplamente superada pelas forâneas.


Poder-se-ia avançar no século XIX e XX, também seguir entrelaçando a África e o Brasil, a Europa e a Ásia, detalhar os mecanismos atrozes de imposição cultural, explicitar as formas de exploração económica e sobretudo analisar a eficácia da instituição escravocrata que traspassa o processo todo. Contudo, o objectivo do presente artigo foi focalizar no aspecto da teia de contactos, de operações, de influências e de mudanças que os portugueses iniciaram no nosso planeta.


Finalmente, e retomando as ideias ligadas à globalização do mundo actual, o maior valor da expansão portuguesa é pensar que pela primeira vez existiu uma verdadeira interpenetração de culturas, e as variáveis de espaço e tempo foram distorcidas pela presença de humanidades diferentes e de trocas recíprocas, ao mesmo tempo e em várias regiões do globo. A interculturalidade é evidente nas marcas deixadas pelos portugueses no mundo, porém, também eles sofreram mudanças culturais significativas, fazendo surgir novas sociedades e comunidades, produtos de sínteses e de interacções. Com e apesar da liderança eurocêntrica, das assimetrias, das especificidades, muito do desconhecido começou a se desvendar, a ser dito e o diferente e o outro “surgiram ...” profusamente e de maneira global “...do azul profundo”.


Bibliografia

Bhabha, Homi K., El lugar de la Cultura, Buenos Aires, Ed. Manantial, 2002

Cuche, Denys, A Noção da Cultura nas Ciências Sociais, Bauru-SP, EDUSC, 1999

Hall, Stuart, A Identidade Cultural na Pós-Modernidade, Rio de Janeiro, DP&A Editora, 2009

Henriques, Isabel Castro, os pilares da diferença- relações portugal-áfrica, Casal de Cambra, Caleidoscópio Ed., 2004

Pessoa, Fernando, Mensagem- Poemas Esotéricos, Ed, Crítica, José Augusto Seabra, coord. 2° ed., Madrid, 1996.

Santos, Boaventura de Sousa, “Entre Próspero e Caliban: colonialismo, pós colonialismo e inter-identidade” in Boaventura de Sousa Santos, A Gramática do tempo: Para uma nova cultura política, Vol. 4, Porto, Ed. Afrontamento, 2006

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