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  • Dámaris Castillo

Se a pandemia fosse uma música!

A arte tem representado as emoções e acompanhado as experiências das pessoas ao longo da nossa história. Neste artigo, Dámaris Castillo, aluna do Curso Superior de Professores da ENS en Lenguas Vivas "Sofía Spangenberg", compartilha uma reflexão que nos convida a pensar e atravessar a crise do COVID-19 por meio de uma música especial.

 

Se a pandemia fosse uma música!

Por Dámaris Castillo


Quando penso na pandemia, com certeza, penso na obra do autor e compositor italiano Antônio Vivaldi. Acho que “As quatro estações” representa, em cada um dos seus movimentos e à perfeição, o processo pelo qual foi evoluindo a “crise” do Covid-19 no mundo inteiro. É por causa das notícias vistas e as informações lidas (que chegavam através das redes sociais como Instagram ou Tik-Tok) que hoje penso em que esse processo se deu de maneira similar na maioria dos países alcançados pelo vírus.


O primeiro dos movimentos a serem analisados será “O inverno” (para entender melhor a minha análise será necessário você escutar cada um dos movimentos nomeados aqui no meu texto, deixarei os links correspondentes de cada um). Esta estação se caracteriza por ser a mais fria do ano, por impossibilitar (nos casos mais graves) o fato trivial de poder trabalhar, por não poder sair de casa, por obrigar as pessoas a ficarem onde seja que elas estiverem (perto ou longe de casa) porque a “neve é terrível”, por fazer com que a maioria ganhemos vários quilos no corpo, etc. É uma estação onde parece que o mundo fica paralisado, imóvel, sozinho, em silêncio, pensativo, etc.


Na obra de Vivaldi, justamente, o começo é um reflexo dessa sensação do estático, da dúvida, da mistura do medo com a ansiedade, do sentimento de que “o pior” pode acontecer, das perguntas... O desenvolvimento inicial da pandemia foi assim, desse jeito: ninguém sabia se as informações eram reais. O problema era “do outro lado do mundo”. Itália está longe demais, será que vai chegar até aqui? Pensou mais de um inocente. “Enquanto o problema não for da gente então há tempo”: tempo de sair de casa, de convidar parentes, de fazer festas, de comemorar aniversários, de continuar a vida como se o problema diretamente não existisse, nem aqui nem lá, na outra ponta do planeta. Porém, à medida que o tempo passava, o “mostro” invisível podia se sentir cada vez mais perto, mais real, mais possível.


No segundo 44 da obra musical, o autor resolve fazer uma mudança no movimento (passando ao chamado “forte piano”) e deixa na partitura uma lenda que diz em italiano: “Al Severo Spirar d' orrido Vento” (“Ao severo sopro do vento horrível”). Essa mudança provoca no ouvinte a sensação de desespero, de nervosismo, de amargura, de não saber bem que decisão tomar. A pandemia também teve essa etapa: todo mundo corria daqui para lá, compravam papel higiênico como se a III Guerra Mundial estivesse a ponto de aparecer na cena da história mundial. Comprávamos comida ao nível de esvaziar até os supermercados mais equipados, inclusive sem nos importar se conseguiríamos pagar as dívidas que essas compras nos deixariam. Não sabíamos muito bem se os nossos filhos passariam o ano escolar, se a escola fecharia para sempre suas portas, se a virtualidade seria o “princípio geral” e o “frente a frente” a exceção à regra. Nada... não sabíamos com certeza quase nada, o que nos levou a nos desesperar e decidir de acordo com esses sentimentos. Ainda pior era a incerteza daqueles que ficaram longe de casa, num aeroporto sem passagem de volta e sem dinheiro. São essas situações limites que nos paralisam, que causam as amarguras mais profundas e nos levam a tomar decisões que não sabemos se conseguirão nos livrar daquele contexto hostil.


Mas... com o tempo tudo se vai acomodando (máxima que minha avó me ensinou). A boa notícia é que o inverno é frio, mas não é eterno. Finalmente chegou A primavera. A estação onde não vemos os resultados da colheita, mas sabemos que as sementinhas começam a florescer. Sabemos que pisamos solo firme e que será necessário um trabalho duro da nossa parte. Este movimento dentro da obra de Vivaldi é um “allegro”. Em uma das partes do soneto o autor escreve que: “La Salutan gl' Augei con lieto canto” (“A cumprimentam as aves com alegre canto”). Refere-se à chegada da primavera. Quando escutamos a peça musical, encontramos que tem um “ar de grandeza”, a música típica para receber os heróis.


A pandemia também teve seus heróis (os tem melhor dito). Mas foi no início que todos saíamos de casa, batíamos palmas, cantávamos nas varandas das nossas casas àqueles que estavam dando suas vidas por todos nós: médicos, enfermeiros, policiais, recolhedores de lixo, pessoal da farmácia, e a listagem pode continuar. O processo da Covid também passou por essa etapa, onde muitos tivemos que ficar em casa, esperar e parabenizar os outros que realmente estavam deixando a vida por uma causa que não tinham escolhido.


Porém, assim como na peça musical, o tempo que durou a emoção foi muito curto. O ser humano é um ser altamente emocional e impulsivo. É só deixar o tempo passar que ele esquece rápido, para com os elogios para começar com as queixas e as reclamações. E o que parecia incialmente algo divertido ou até simpático: cantar todos juntos, alegres nas varandas, fazendo palmas, etc., foi se tornando um pesadelo. Pois é, chegou finalmente “O verão”. Das quatro estações de Vivaldi, sem dúvidas, esta é a mais expressiva de todas. O primeiro pulso já nos dá o “aviso” de que o que segue será intenso.


Durante o verão vemos os frutos daquilo que durante o inverno plantamos. O verão nos dá o produto do trabalhado meses antes. Aliás, dependerá do plantado o obtido na colheita. A pandemia também teve seu momento de “intensidade”. O presidente, Alberto Fernández, falava da “curva do vírus” dependendo do aumento dos casos no país. E assim foi: os casos aumentaram demais. Na obra musical, o ouvinte pode identificar essa intensidade no uso dos graves das notas musicais e, também, nas repetições constantes das notas através do uso do adorno para piano chamado de “trino”. Esta etapa da pandemia é a mais complexa. Muitas perdas, a dor de não poder despedir aqueles que até não muito tempo estavam conosco, a tristeza de comemorar datas importantes longe dos seres amados, a nostalgia de não poder visitar os pais, os avós, os amigos, etc., perder o trabalho, aumentar a ansiedade por não poder ter o controle da situação, hospitais lotados, falta de recursos econômicos, a vacina que não chega, etc. Viver o ser humano tudo isso em pouco tempo não pode senão ser chamado de “intenso”.


Prefiro “no pessoal” deixar aberta a possibilidade de repensar o último movimento da obra de Vivaldi. O “outono” deixa a intensidade no passado e se prepara para, logo, receber o frio inverno novamente. Acho que nos encontramos frente à possibilidade de modificar a partir da própria experiência o que nos resta do presente ano e, inclusive, do ano seguinte. Seremos capazes de amadurecer como sociedade e evitar que o ciclo das estações comece novamente? Ou, muito pelo contrário, esse ciclo é parte do percurso da história mesma do homem e, portanto, inevitável? A resposta dependerá das decisões do presente.


Dámaris Castillo

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