O presente trabalho é o resultado de um estudo bibliográfico e documental com relação às questões sobre etnia, cor ou raça presentes nos censos demográficos realizados no Brasil de 1872 a 2010. A população brasileira é o resultado da miscigenação racial ocorrida, principalmente, a partir da colonização portuguesa, seu contato com os habitantes indígenas do território e a decisão em utilizar mão-de-obra escrava africana nas lavouras de cana-de-açúcar no século XVI. Além da discriminação racial e social que pardos e mestiços sofrem, o censo brasileiro ainda não apresenta as alternativas necessárias de resposta que possibilitem entender a composição étnica real do povo brasileiro. Atualmente, as possibilidades são: branco, preto, amarelo, pardo e indígena, nesta ordem. Assim, ao não se conhecer as reais características étnicas e raciais da população e suas necessidades, é muito difícil tomar decisões para aplicação de políticas públicas que promovam a inclusão e o desenvolvimento social.
Palavras-chave: Censo demográfico; miscigenação; identidade racial.
O que o Censo do Brasil não conta Inclusão e exclusão na pesquisa demográfica ao longo dos anos
Introdução
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o censo demográfico, realizado a cada dez anos em todo o território nacional, tem como objetivo contar todos os habitantes do país, verificando suas características étnicas, sociais, culturais e econômicas. Estas informações serão fundamentais para a o conhecimento da realidade e particularidades da população, elaboração de políticas públicas, decisão sobre investimentos e áreas de foco.
Além de perguntas sobre a composição familiar, o censo normalmente indaga sobre a participação econômica dos cidadãos (i.e. formas de trabalho e remuneração), condições de vida, saúde, educação e descendência étnica. É justamente com relação a esta última categoria que o presente trabalho procura investigar.
O Brasil é um país cuja identidade cultural foi construída com base na miscigenação. A chegada dos portugueses ao Brasil no século XVI deu início à mistura de raças, que se tornou ainda mais diversa com o tráfico de escravos para trabalhar na indústria canavieira e o posterior incremento da imigração europeia, impulsionada pela produção de café no século XIX e pelas políticas de ocupação do sul do Brasil.
Apesar da mestiçagem não ser uma novidade no Brasil, os censos realizados no país deram pouca atenção a este tema, oferecendo escassas opções de resposta às questões sobre etnia, raça ou cor. A falta de informação sobre este tipo de característica da população impede que os dados sejam analisados considerando as particularidades dos diferentes grupos étnicos existentes em todo território nacional e dificulta a decisão sobre políticas públicas que objetive um grupo em especial. De certa maneira, não aprofundar sobre este tópico evidencia o posicionamento de continuar evitando questões delicadas e conflitivas como racismo e discriminação racial.
História do Censo Demográfico no Brasil
O primeiro censo brasileiro foi realizado em 1872 (período quando a escravidão ainda era legal e prática frequente no país) e apresentou quatro opções de cor1: ‘branco’, ‘preto’, ‘pardo’ e ‘caboclo’, sendo que esta última procurava abranger os indígenas. No segundo censo, elaborado em 1890, a categoria ‘pardo’ foi substituída pela opção ‘mestiço’. Em 1900 e 1920, não foi incluída nenhuma pergunta sobre cor ou raça no censo nacional. Em 1910 e 1930, a pesquisa estatística não foi realizada (SENKEVICS, 2015).
Segundo Petruccelli (2013), no início do século XX, algumas correntes de racismo científico defendiam a ideia de inferioridade sociocultural da população negra e indígena, chegando a defender a eliminação destes grupos raciais mediante o branqueamento da nação através da miscigenação com o grupo branco, visto como superior. Assim, a exclusão de perguntas que visavam obter informações relevantes sobre a composição étnica ou racial dos brasileiros pode ser considerada como um posicionamento político claro. Seria melhor não saber nada do que descobrir que grande parte da população era negra ou indígena.
Com a criação do IBGE, a classificação racial retorna ao censo brasileiro em 1940 e as opções de resposta são ‘branco’, ‘preto’ e ‘amarelo’. A categoria ‘indígena’ foi eliminada do questionário.
A instrução para o preenchimento do quesito, em 1940, foi de que se considerassem apenas as três respostas mencionadas, lançando um traço (–) no espaço correspondente do questionário em qualquer outro caso. Posteriormente, o traço foi codificado como categoria residual, parda, e foi destinada tanto para classificar os que utilizaram outros termos de cor ou raça, quanto para os indígenas, para quem não se proporciona termo de identificação (IBGE, 2008, p. 15).
Em 1950 e 1960, se reincorporou a categoria ‘pardo’ e foi respeitada a autodeclaração, ou seja, a responsabilidade por determinar a qual grupo racial pertence passou a ser do entrevistado e não mais do entrevistador. Na década seguinte, em 1970 e em plena ditadura militar, as perguntas sobre cor, raça e descendência étnica não estiveram presente no censo realizado.Em 1980, a pergunta voltou a fazer parte da pesquisa demográfica com as mesmas categorias utilizadas em 1950 e 1960: ‘branco’, ‘preto’, ‘pardo’ e ‘amarelo’. Finalmente, em 1991, a categoria ‘indígena’ voltou a fazer parte das possíveis alternativas de resposta. As cinco alternativas de resposta (‘branco’, ‘preto’, ‘amarelo’, ‘pardo’ e ‘indígena’) foram mantidas nos questionários dos censos de 2000 e 2010. Este último apresentou uma novidade, segundo Petruccelli (2013, p. 24), “pela primeira vez, as pessoas que se identificaram como indígenas foram indagadas a respeito de sua etnia e língua falada”.
Em 1980, a pergunta voltou a fazer parte da pesquisa demográfica com as mesmas categorias utilizadas em 1950 e 1960: ‘branco’, ‘preto’, ‘pardo’ e ‘amarelo’. Finalmente, em 1991, a categoria ‘indígena’ voltou a fazer parte das possíveis alternativas de resposta. As cinco alternativas de resposta (‘branco’, ‘preto’, ‘amarelo’, ‘pardo’ e ‘indígena’) foram mantidas nos questionários dos censos de 2000 e 2010. Este último apresentou uma novidade, segundo Petruccelli (2013, p. 24), “pela primeira vez, as pessoas que se identificaram como indígenas foram indagadas a respeito de sua etnia e língua falada”.
A seguir, é apresentado um quadro que resume as categorias raciais usadas como possíveis alternativas nos censos realizados no Brasil de 1872 a 2010
Fonte: IBGE, 2011
O que o censo conta
Sem dúvidas, realizar um censo demográfico em um país tão extenso e povoado como o Brasil é tarefa que demanda muito tempo, recursos humanos e financeiros. Dificilmente serão abrangidas todas as perguntas desejadas e algumas deverão ser cortadas. Escolher quais questões incluir ou excluir do questionário são parte de decisões políticas e espelham o que cada governo considera mais importante.
Graças às pesquisas demográficas realizadas no Brasil ao longo dos últimos 145 anos, é possível estudar a tendência dos dados que foram indagados continuamente, como por exemplo o crescimento populacional de 17 milhões de pessoas em 1900 a 190 milhões em 2010 (IBGE, 2011). O nível educacional, principalmente a taxa de alfabetização também foram perguntas frequentes durante a história dos censos e, com base nisso, sabe-se que o analfabetismo de pessoas maiores de 15 anos diminuiu de 56% em 1940 para 33% em 1970 e 9% em 2010 (IBGE, Séries históricas, 2011).
Além disso, os Censos realizados no Brasil sondaram sobre questões de moradia, tipo de casa, forma de abastecimento de água, coleta de lixo e esgoto, eletrodomésticos existentes no domicílio, tipos de uniões e fecundidade dos entrevistados. Finalmente, questões sobre migração nacional e internacional também foram incluídas na pesquisa estatísticas de 2010.
A que o censo não conta
No que diz respeito à classificação racial, observam-se irregularidades nas formas de pergunta, nas opções de respostas e na frequência das pesquisas. Esta instabilidade provoca dificuldade para a interpretação dos dados em um período determinado e na análise histórica de séries ou tendências.
À primeira vista, pode até parecer ser um problema teórico ou técnico, onde apenas os dados estatísticos sejam afetados, porém se transforma em um empecilho prático também, já que impede a compreensão da realidade de forma mais completa e robusta. Por exemplo, como saber quantas pessoas descendentes de negros são analfabetas ou estão na universidade? O censo demográfico não é capaz de responder esta pergunta. Sabe-se que existem 82 milhões de pessoas (43% da população brasileira) que se autodefinem como ‘pardas’ (IBGE, Censo de 2010), porém não se tem nenhum outro detalhe sobre os resultados de miscigenação que experimentou a sociedade brasileira durante toda sua história. Não se sabe se são mulatos, cafuzos, mamelucos ou descendentes de japoneses, por exemplo.
O quadro abaixo mostra a distribuição racial da população brasileira conforme os censos realizados no Brasil. O primeiro fato surpreendente é que, após 50 anos sem obter (ou sem querer obter) informação sobre a cor, raça ou etnia da população, o censo de 1940 revelou que a porcentagem de cidadãos brancos cresceu de 44% em 1890 para 63,5% em 1940. Se, por um lado, é certo que a imigração europeia aumentou durante este período, os resultados indicariam que a miscigenação diminuiu no período.
Quadro 2 - Distribuição racial no Brasil segundo os Censos Demográficos
Fonte: Petruccelli (2013)
Senkevics (2015) rejeita a ideia de crescimento da população branca durante a primeira parte do século XIX. Para autor, devido ao projeto político vigente da época, decidiu-se por dar maior visibilidade à população branca em detrimento dos cidadãos negros, pardos e indígenas. De fato, este último grupo foi totalmente esquecido durante mais de um século. A categoria ‘indígena’ foi incluída no censo de 1890 e abrangeu 9% da população e somente voltou a aparecer como variável possível de resposta 101 anos depois, em 1991.
A categoria ‘parda’, que ora foi também chamada de ‘mestiça’, nunca recebeu subclassificações internas e abrange uma população com características sociais e culturais muito heterogêneas. Nela estão incluídos os mulatos (muitos deles se autodefiniram como morenos, morenos claros e morenos escuros nos censos que permitiram a autodeclaração de cor e raça); os caboclos ou mamelucos; os cafuzos; e todo o leque diversificado de miscigenação possível em um país que recebeu imigração muito variada durante toda sua história. De fato, para Petruccelli (2013, p. 56), esta lógica
tem, ao longo da história brasileira, contribuído para desvincular as origens africana e indígena de parcela significativa da população nacional e, assim, minimizar o seu potencial político na esfera sociopolítica, ao subtrair, de maneira sub-reptícia, o sentimento de pertencimento étnico-racial desses homens e mulheres.
No último censo realizado em 2010, 43,1% da população brasileira se autodeclarou ‘parda’, apresentando um aumento de 4,2% com relação à década anterior. Durante o mesmo período a porcentagem da população que se definiu como ‘branca’ se reduziu em 5,7%. Esta modificação na distribuição reflete mais uma mudança de consciência do que demográfica. Atualmente, existem campanhas de valorização da raça negra por parte de organizações não governamentais e setores privados. É necessário um esforço por parte do governo para conhecer a formação do universo ‘pardo’ e suas necessidades. Dessa forma, será possível a elaboração de políticas públicas que realmente atinjam este público, como a aplicação do sistema de cotas nas universidades.
Considerações Finais
Com relação à miscigenação racial e cultural no Brasil, o que mais se sabe é que esta foi determinante para a construção social, racial e cultural do país, porém, apesar dos censos realizados por quase dois séculos, ainda é difícil ter uma fotografia completa da sociedade. As cinco opções de resposta à classificação do censo não são suficientes para refletir a realidade de 200 milhões de brasileiros.
De fato, falar em cor quando se refere à composição social, racial, étnica e cultural de um país já é um posicionamento porque a cor está relacionada a classificações biológicas e pode ser suposta mais facilmente. Raça é um conceito mais profundo, que exige mais atenção para ser determinada, está vinculada à origem cultural e social.
Tentar enquadrar a população brasileira nas categorias ‘branco’, ‘preto’, ‘amarelo’, ‘pardo’ e ‘indígena’ deveria ser considerado um descaso com a história social e cultural do país. Da maneira como foram construídas as perguntas incluídas no último censo brasileiro, é possível saber quantas e quais casas possuem máquina de lavar roupas, porém não sabemos quantos os mulatos existem no território nacional, onde estão e quais são suas necessidades. Esse desinteresse e negligência por parte do governo seria motivado somente por questões sócio-históricas ou haverá razões econômicas para esta decisão política?
Referências Bibliográficas
DINIZ ALVES, José Eustáquio. A definição de cor/’raça’ do IBGE. In: ECOdebate. 28 de junho de 2010. Disponível em: https://www.ecodebate.com.br/2010/06/28/a-definicao-de-corraca-do-ibge-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/. Acessado em 07 de novembro de 2017.
IBGE. Características étnico-raciais da população: um estudo das categorias de classificação de cor ou raça, 2008. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. IBGE, 2011.
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em: https://www.ibge.gov.br. Acessado em 05 de novembro de 2017.
PETRUCCELLI, José Luis. Caracteristícas étnico-raciais da população: classificações e identidades. Rio de Janeiro: IBGE, 2013.
SENKEVICS, Adriano. A cor e a raça nos censos demográficos nacionais. IN: Geledes - Artigos e reflexões. 23 de fevereiro de 2015
UNESCO. La experiencia brasileña de alfabetización de adultos - el MOBRAL. Paris: UNESCO, 1974.
[1] O censo de 1872 não incluía a palavra ‘raça’, somente indagava sobre a ‘cor’ dos entrevistados. E para a população escrava as opções de resposta eram duas: ‘preto’ ou ‘pardo’ (IBGE, 2011).
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