“O lugar da realidade e o lugar do sonho em ‘Chuva Oblíqua’, de Fernando Pessoa”
- Alejandra Leoni
- 11 jun
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Actualizado: hace 6 horas
A professora Alejandra Leoni, a partir de sua apresentação nas VIII Jornadas de Educación y Traducción do ENSLV SBS, retoma a análise minuciosa da primeira parte do poema “Chuva Oblíqua” de Fernando Pessoa. Seu estudo foca no interseccionismo e no funcionamento da criação literária sob perspectivas linguística e literária.
“O lugar da realidade e o lugar do sonho em ‘Chuva Oblíqua’,
de Fernando Pessoa”.
“Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito”
Por Alejandra Leoni*
Assim inicia Fernando Pessoa o seu poema “Chuva Oblíqua”, poema de seis partes, tido por modelo do Interseccionismo, publicado no segundo número da Revista Orpheu em junho de 1915.
E já no forte hipérbato de abrir a frase com o verbo, e por este ser justamente o verbo ATRAVESSAR, este autor textual pareceria estar querendo enfatizar, pela localização, esse aspecto cortante, pungente, que leva consigo a interseção dos planos, materializado na OBLÍQUA, a linha que separa mas também une, divide e paradoxalmente funde os eixos, neste caso, da REALIDADE e do SONHO e, como veremos depois, os sucessivos pares de opostos a eles associados, entre os quais, precisamente, os eixos HORIZONTAL e VERTICAL que dão sentido ao procedimento de construção e ao título do poema.

E mais ainda, na voluntária ambigüidade da construção sintática que desloca sujeito e objeto direto a lugares pouco canônicos, o poeta estaria nos convidando a refletir, logo desde o começo, sobre o posicionamento do eu lírico e sobre a sua atividade ou passividade...
O meu sonho atravessa esta paisagem? ou esta paisagem atravessa o meu sonho?
Que espaços físico-ficcionais visita este eu poemático nas diferentes partes desta Chuva e por que estados de alma se deixa atravessar? De que lugares ele enuncia em cada caso: da paisagem ensolarada, do teatro, do quintal da infância, do cais do porto infinito e sombrio, da igreja douradamente iluminada, do Egito? Qual é o ponto de partida e até onde ele chega nessa gradação crescente que aproxima tempos e lugares diferentes a tal ponto de atingirem uma paradoxal interseção quase total? Que figuras e construções representam sintaticamente essa fusão? De que recursos esse arquiteto se serve para materializar essa amálgama perfeita?
Algum desses planos, em determinado momento, predomina sobre o outro, ou se poderia estabelecer entre eles uma relação de equivalência? E por último, como isso tudo acaba ou como se dá o regresso ao ponto de partida, o retorno, à “realidade”?
São estas algumas das perguntas que vamos tentar responder ao longo deste artigo.
Por questões de espaço, comentaremos aqui só a primeira parte da Chuva Oblíqua, e saibamos que semelhante procedimento de construção se estende às subseqüentes, assumindo novos pares de opostos que também se cruzam e empregando estes e outros recursos lingüísticos para representar essa interseção.
Mas em primeiro lugar, umas poucas palavras para referir de que maneira Fernando Pessoa concebe o Interseccionismo.
Em carta a Armando Côrtes Rodrigues, de 19 de janeiro de 1915, ele define o Interseccionismo como: “a intersecção duma paisagem com um estado de alma que consiste num sonho, ou com outra paisagem ou consigo própria, operando nessa divisão o estado de alma de quem a contempla”.
Note-se que aqui já aparecem os elementos principais do começo de Chuva Oblíqua: a paisagem e o estado de alma que é o sonho... E se entendemos a interseção como: corte de alguma coisa pelo meio, encontro de duas linhas ou de dois planos que se cortam; cruzamento ou ponto onde ocorre esse encontro, vão começar a fazer sentido algumas das nossas apreciações.
Mas continuemos com Pessoa, pois, mais tarde, numa carta enviada ao editor Harold Monroe, ele escreve: “o termo ‘interseccionista’, aplicado aos poemas, não serve para distinguir uma escola ou corrente [...] mas é uma mera definição do processo, pois nesses poemas foi minha intenção registar, em intersecção, a simultaneidade mental de uma imagem objectiva e subjectiva, tal como o quarto onde o sonhador está e as imagens que o seu sonho contém”.
Vamos ver, então, como esse processo de criação literária opera, tanto de um ponto de vista lingüístico-discursivo quanto literário.
Ao ler a primeira parte do poema, podemos começar a reunir elementos associados ao plano da REALIDADE ficcional do eu lírico, por um lado, e aqueles pertencentes ao SONHO, por outro:
“Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito
E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios
Que largam do cais arrastando nas águas por sombra
Os vultos ao sol daquelas árvores antigas...
O porto que sonho é sombrio e pálido
E esta paisagem é cheia de sol deste lado...
Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio
E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol...[...]”
Note-se que num primeiro momento os planos aparecem claramente separados. Temos por um lado esta paisagem com flores e árvores, paisagem cheia de sol deste lado. E por outro lado, o meu sonho dum porto infinito, sombrio e pálido, com um cais e velas de grandes navios e outras árvores, aquelas, as antigas.
O uso dos pronomes demonstrativos, enquanto dêicticos, se torna importante de um ponto de vista discursivo para situar o eu lírico em tempo e espaço: AQUELAS – distantes - ÁRVORES ANTIGAS vs ESTAS – próximas - ÁRVORES AO SOL. Quer dizer, O PASSADO, NO MEU SONHO VS O PRESENTE, NESTA PAISAGEM DA REALIDADE.
Vejamos que a partir da adversativa MAS, as coisas mudam, pois “no meu espírito” aparecem dois paradoxos, que por sua vez vão construir uma estrutura quiasmática, numa quase-simetria especular: é quebrado – duas vezes - o princípio de identidade nas afirmações: “o sol deste dia é porto sombrio” e logo a seguir em “os navios que saem do porto são estas árvores ao sol”; pois é estabelecida uma relação de equivalência entre elementos diferentes, ou até, opostos. E é importante, para representar a interseção, o emprego que o autor faz dos verbos de ligação, na constituição dos paradoxos, em que é afirmada uma igualdade inexistente entre entidades –inclusive - contrárias.
Pode-se ver na distribuição das cores, a relação que assumem inicialmente os elementos (a realidade ficcional “desta paisagem” e o estado de alma que consiste no sonho do porto infinito) e como, progressivamente, eles vão se entrelaçando.
Já nos referimos ao valor do verbo ATRAVESSAR para abrir o poema. Têm essa mesma função, a de representar a interseção, as expressões ligadas à TRANSPARÊNCIA: pois ela aproxima, permite a passagem, o intercâmbio, de um lugar-tempo a outro, e põe em contato visual dois mundos separados, porque em definitiva, une.
E o poema continua se entretecendo:
“[...] Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...
O vulto do cais é a estrada nítida e calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos das árvores
Com uma horizontalidade vertical,
E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro...
Em gradação crescente, os dois eixos que inicialmente apareciam bem delimitados, separados pela OBLÍQUA, agora vão se aproximando, chegam a ser paradoxalmente a mesma coisa, se refletem no espelho de um quiasmo e aqui efetivamente se cruzam: os navios do sonho passam por dentro dos troncos das árvores da realidade, e os dois planos se confundem até ficarem fundidos num só, fusão representada pelo oxímoro da horizontalidade vertical e na posterior amálgama evidenciada em “E deixam cair amarras na água (os navios do sonho, explicitaria eu) pelas folhas (das árvores desta paisagem) uma a uma dentro”.
Esse oxímoro estaria reunindo, concentrando, intersetando – NA OBLÍQUA - os elementos representantes das coordenadas fulcrais: árvores, flores, velas, muro, cair amarras, cair folhas, NA VERTICAL VS cais, navios, naus, sombra, estrada, na HORIZONTAL.

E já na última estrofe, a modo de arremate, um novo desdobramento:
Não sei quem me sonho...
Súbito toda a água do mar do porto é transparente
E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada,
Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele porto,
E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa
Entre o meu sonho e o meu ver esta paisagem
E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,
E passa para o outro lado da minha alma...”.
Aqui, a precária realidade em que se situa essa voz ficcional que progressivamente se deixa atravessar por um sonho, luta por reaparecer. Esse estado de alma que avançou sobre o eu lírico, o invadiu até chegar a ser a sua única percepção, continha, lá dentro, paradoxal, especularmente, a paisagem do real: “Súbito toda a água do mar do porto é transparente/ E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada,/Esta paisagem toda” e a sacudidela é tal, que ele próprio já não sabe quem se sonha... pois, como num pesadelo barroco, ele chega a ver refletida no fundo da água do sonho, esta sua realidade/paisagem, e mais uma vez um paradoxo é utilizado para representar a interseção: “estrada a arder em aquele porto”.
Na preposição “EM” se tocam espacialmente os dois planos, e no gerúndio “A ARDER” se evidencia a simultaneidade, o aspecto temporal da fusão.
Até que a sombra de outra nau, mais antiga, se aproxima do eu lírico e cinestesicamente o atravessa na alma e depois o abandona: “entra por mim dentro,/E passa para o outro lado da minha alma...”. Isto é, o sujeito volta à realidade, acorda do sonho, como o muro do quintal da infância que desaba no meio da sala de concerto, na sexta parte desta Chuva, como acontece com Álvaro de Campos quando volta à realidade, no final da Tabacaria: “Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me./ Acenou-me adeus, gritei-lhe ‘Adeus ó Esteves!’, e o universo/ Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu”.
Não é por acaso a coincidência do procedimento, é sabida a transformação que o Interseccionismo viria ter no Sensacionismo do engenheiro naval. Mas isso, fica para um próximo encontro.
*Alejandra Leoni é professora de português, formada pelo IES em Línguas Vivas "Juan R. Fernández". Iniciou a especialização na área de literatura com o trabalho Fernando Pessoa: o "Supra-Camões” da literatura portuguesa, realizado sob a orientação do Prof. Fernando J.B. Martinho na Faculdade de Letras de Lisboa, e continuou aprofundando nos estudos da área até a atualidade. Obteve o Diploma Superior em Ciências Sociais com orientação em Leitura, Escrita e Educação, pela “Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales (FLACSO)” - Sede Argentina.
Até dezembro de 2022, data de sua aposentadoria, desenvolveu-se como professora de Literatura Portuguesa no Línguas Vivas "Juan R. Fernández" e de Literaturas em Língua Portuguesa e Seminários de Literatura em Língua Portuguesa na ENS em Línguas Vivas “Sofía Broquen de Spangenberg”, além de outras disciplinas.
Na atualidade continua pesquisando, dá conferências no âmbito de sua especialização, participa em eventos culturais junto com as Comunidades Portuguesas da República Argentina e é Avaliadora do Centro de Avaliação de Português Língua Estrangeira (CAPLE) em Buenos Aires.
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