No presente artigo, Cristina R. Santoro, tradutora literária y técnico científica de espanhol-francês pelo Instituto Superior de Lenguas Vivas "Juan Ramón Fernández", Mestre em Letras e Tradução pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e doutoranda em Letras e Tradução pela mesma casa desenvolve reflexões a respeito das proximidades entre o exílio e a tradução.
De textos, traduções e exílios
Aproximar exílio e tradução não é novo. O exílio tem sido utilizado como um operador de lisibilidade para a tradução, uma metáfora que permite explicar melhor o que acontece quando se traduz. Walter Benjamin, em A tarefa do tradutor (BENJAMIN, 2008), concebe a possibilidade da existência de uma “língua pura” da tradução, exilada nas línguas nacionais. Observa-se assim uma analogia, a partir de alguns aspectos do exílio que podem ter acesso à visibilidade quando traduzidos. Desta maneira, a tradução não é a atividade mas o produto, ela não é estritamente linguística, senão cultural: trata-se de um texto que deixa seu país de origem para se instalar fora. O texto traduzido e o exilado se dizem numa outra língua, eles se integram numa outra cultura, à qual eles devem se adaptar para sobreviver. A tradução é o texto em exílio. Ela é a sobrevivência do texto. Esse texto consegue sobreviver e deve, a partir daí, ser interpretado, redefinido por olhares estrangeiros portadores de esquemas de interpretação do mundo, de pressupostos, que são diferentes daqueles sobre os quais eles foram criados.
Qual é a justificativa dessa tentativa de aproximar essas duas figuras: o texto traduzido e o exilado, e não tentar juntar o texto traduzido com o emigrado ou o expatriado? Uma resposta possível seria: já que, e segundo assinalado por Edward Saïd em Reflexões do exílio (SAID, 2003), se todas essas modalidades implicam um ponto de saída do país de origem para viver fora, o exilado tem a particularidade de se encontrar impossibilitado para retornar, e “uma vez banido, o exilado vive uma vida anormal e miserável, ele é estigmatizado porque estrangeiro” (SAID, 2003, p. 181). O emigrado e o expatriado têm decidido partir, eles podem retornar para o país natal se eles assim o desejassem, porém, essa escolha é impossível para o exilado e para a tradução. Só muito excecionalmente um texto traduzido retorna para o país de origem, onde ele achará raramente leitores.
O pertencimento e a identidade são desafios maiores, seja no exílio, seja na tradução. O desenraizamento desencadeia um problema de identidade, já que o texto traduzido é um outro. Os discursos tradicionais o chamam de “segundo e secundário”, lhe rejeitam sua autonomia, não lhe reconhecem uma identidade própria. As ideias, a disposição das frases, a intriga, as referências culturais são escolhas do autor do texto de partida. Contudo, esses textos são reescritos e inscritos no contexto de chegada. Trata-se do texto do autor ou aquele do tradutor ? Qual seria a nacionalidade para um texto traduzido? Qual seria o enraizamento cultural ? Citamos Talahite-Moodley, em Problématiques identitaires et discours de l'exil dans les littératures francophones [Problemáticas identitárias e discursos do exílio nas literaturas francófonas], no que diz respeito ao exílio, colocação nos permitindo observar que ela poderia ser aplicada para a tradução:
“[…]l’expression de l’exil prend des formes multiples qui nuancent la notion d’enracinement dans une terre ou une culture singulière. Elle tend à contester une vision d’appartenance monolithique pour promouvoir des identités en devenir.” (TALAHITE-MOODLEY, 2007, p. 3).
“[a expressão do exílio adota formas múltiplas aportando nuances para a noção de enraizamento numa terra ou numa cultura particular. Ela tenta questionar uma visão de pertencimento monolítico para promover identidades em mudança continua.]” (Minha tradução)
Como consequência desse desenraizamento, dessa falta de pertencimento, dessa “identidade em devir”, exilados e traduções sofrem a desconfiança de aqueles que se acham perfeitamente instalados no texto original, que têm raízes culturais fixas, que definem tradicionalmente o individuo e o texto. Só seria preciso pensar no estatuto do texto traduzido no que diz respeito ao texto de partida e quanto aos outros textos escritos diretamente na língua de tradução. Os preconceitos abundam: eles são julgados de falta de autenticidade e de originalidade nos dois contextos.
A noção de “belles infidèles” (introduzida por Georges Mounin no livro Les belles infidèles [1952-1953]) e a velha formula “traduttore, traditore” ostentam diretamente essa desconfiança. Desta maneira, as noções de fidelidade e de liberdade, que se acham já presentes nos primeiros discursos sobre a tradução e que se encontram ainda hoje muito presentes em muitas reflexões sobre a tradução, sobre outras aparências, tais que as noções de domesticação e de deslocamento. Uma tradução encontra sempre detratores: se ela for percebida como próxima demais do contexto de partida, ela é infiel à língua e à cultura de chegada; se ela for extremamente adaptada a seu novo contexto, diz-se dela que é traiçoeira de suas origens. Como os exilados, os textos traduzidos são considerados eternos estrangeiros. Eles não estão jamais efetivamente “na terra deles”, seja qual for a geografia onde eles pudessem morar, viver o exílio. Como consequência, eles experimentam problemas de reconhecimento e de estatuto. A esse respeito, Antoine Berman, em Pour une critique des traductions: John Donne [Para uma crítica das traduções: John Donne], assinala o seguinte:
“Les littératures étrangères traduites ne s’intègrent généralement pas à la littérature autochtone, sauf dans le cas de très grandes traductions (...) Elles restent des « littératures étrangères » même si elles marquent la littérature autochtone. (...) La littérature traduite ne s’intègre donc pas à la littérature autochtone, comme le montrent les rayons des librairies.” (BERMAN, 1995, p. 58).
“As literaturas estrangeiras traduzidas não se integram, em geral, à literatura autóctone, salvo no caso das grandes traduções (…). Elas são sempre “literaturas estrangeiras”, mesmo se elas marcam a literatura autóctone (…). A literatura traduzida não se integra então à literatura autóctone, segundo o observado nas prateleiras das livrarias”. (Minha tradução)
As prateleiras das livrarias assinaladas por Berman são aquelas nas quais acha-se isolada geralmente a literatura traduzida. Elas simbolizam uma problemática que tem implicações muito profundas. A verdadeira questão é que o texto traduzido já não é mais reconhecido no país de origem como fazendo parte do sistema literário nacional e ele não é reconhecido também não pelo sistema de chegada. Even-Zohar (2000) tem demostrado a existência de um cânon da literatura traduzida no interior de cada sistema literário nacional, contudo, esse cânon, sua influência sobre a cultura de chegada, a qualidade das obras que fazem parte dele, são ignoradas pelas instâncias culturais nacionais. A obra traduzida não é evocada nem nos manuais de histórias das literaturas de origem, e também não em aqueles da literatura de chegada. As traduções não aparecem em nenhuma parte. Elas são ignoradas pelos discursos que determinam para a posteridade a produção literária e cultural dos povos. As histórias da tradução nacionais nas quais se fazem muitos investimentos –particularmente, em países tais como a França e a Espanha- tomam conta dos fatos e de seus efeitos, por enquanto desconhecidos. Desta maneira, observa-se fundamental estabelecer e determinar a história dos exilados, imigrados e expatriados, para ter certezas quanto à função dos indivíduos e dos fenómenos que eles criam, no interior de cada história nacional; torna-se muito importante conhecer os textos que foram traduzidos em cada período, os tradutores, os editores e as casas editoras que fizeram essas traduções, tendo como objetivo conhecer as consequências sobre as histórias das literaturas nacionais.
Poder-se-ia afirmar assim que a tradução é um texto no exílio, um texto em sobrevivência, o eterno estrangeiro que tem perdido seu lugar no país natal e a quem se outorga um lugar marginal no país de acolhimento. Sua função crucial não é tida em conta em nenhum dos países entre os quais ele se divide. Poder-se-ia também afirmar que os dois textos, o de partida e o de chagada, não são escritos pelo mesmo autor e que eles vivem numa identidade dupla, numa hibridação do texto traduzido alimentada pela desconfiança secular.
Se o olhar dirigido para um texto traduzido e para o exilado é sempre suspeitoso, isso se explica porque eles não são monolíticos, estáveis e então familiares e confortáveis. Eles desencadeiam uma problemática identitária que perturba a todos os que se fixam sobre uma visão tradicional do mundo, a todos os que se encontram incomodados pela alteridade.
Resumindo, poder-se-ia afirmar que os textos e os exilados pertencem a um universo perturbador, estranho, a um entre-lugar onde tudo é tradução. E ficamos refletindo sobre Barthes, Deleuze ou Foucault quando eles salientam que a escritura, ou a criatividade, se colocam a partir do século XIX na margem, dentro da quebra, ou a cesura quanto ao Discurso Social, e observar-se assim uma outra manifestação de esse exílio que se torna, finalmente o texto literário em si mesmo.
Referências
BENJAMIN, Walter. A tarefa do tradutor: quatro traduções para o português. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2008.
BERMAN, Antoine. Pour une critique des traductions: John Donne. Paris: Gallimard, 1995.
EVEN-ZOHAR, Itamar. “The Position of Translated Literature within the Literary Polysystem”, IN: Lawrence Venuti (ed.). The Translation Studies Reader. London & New York: Routledge, 2000, pp. 192-197.
MOUNIN, Georges. Les belles infidèles [1952-1953]). Lille: Presse Universitaire du Septentrion, 1955.
SAID, Edward W. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Tradução: Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
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