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Irma A. González

Português ‹‹low-cost››


O emprego de estrangeirismos na língua portuguesa faz parte de um debate que divide opiniões. No artigo “Português low-cost”, a Doutora Irma González -leitora e responsável pelo Centro de Língua Portuguesa do Camões I.P. em Buenos Aires- desenvolve uma leitura crítica da abordagem teórico-linguística do assunto, analisando fundamentos de diferente índole.

 

Português Low-Cost


Dedicado ao Graciano Marques.

In memoriam.

À Zulmira de Jesus Ferreira Marques.



Recriamos a língua na medida em que somos capazes de produzir um pensamento novo,

um pensamento nosso. O idioma, afinal, o que é senão o ovo das galinhas de ouro?

Perguntas à Língua Portuguesa – Mia Couto

Enquanto em Portugal se cruzavam petições eletrónicas a favor e contra a entrada em vigor de um nova ortografia para a língua portuguesa, quando um pouco por toda a parte se vislumbravam sentimentos de nacionalidade na discussão sobre os princípios ortográficos do polémico Acordo de 1990[1], assistíamos quase inconscientes à iteração mediática de estrangeirismos como Beijing, Tsunami, Euronext Lisbon[2], low-cost e “exotismos” como carjacking ou homejacking.

E há dois argumentos que são sempre invocados quando se defende o uso de termos não vernáculos: as palavras ou expressões revelam-se mais sintéticas na outra língua; os vocábulos pertencem a gírias técnico-científicas aceites pelos utilizadores especialistas como sendo específicas (o tecnoleto).

Ou seja, a necessidade de elevada especialização e a economia da língua justificariam a opção.


Ora, deixando de lado o debate sobre inclusão/exclusão em torno do uso de um termo importado[3], é um facto que estrangeirismos e empréstimos[4] existiram sempre na história das línguas e não parece que representem qualquer ameaça à “língua pátria”[5]. São inevitáveis na nossa atual comunicação global devido à necessidade de designar novas realidades e muitos deles enriquecem a língua que os incorpora.


Basta verificar as influências de outras línguas no léxico do Português moderno ao longo da sua história para confirmar o enriquecimento que aqui defendo.

E este tipo de riqueza manifesta-se também na sintaxe da língua, mas é no vocabulário que podemos encontrar a maior parte da incorporação.


Mas vamos revisitar a História. Por volta do século V d.C., os povos germânicos – entre os quais se destacam os Visigodos e os Suevos – invadiram a Península Ibérica e, embora absorvendo o latinismo vigente, legaram cerca de duzentos vocábulos que fazem parte do sistema lexical atual, como vassalo, guerra, raça, luva, Ricardo, orgulho, barriga, etc.


Já em 711, com a invasão muçulmana e a ocupação da Península Ibérica pelos Árabes (que resistem ao Latim), dá-se uma irrupção de termos ainda maior, - devido também à superioridade técnico-científica da sua cultura se comparada com a dos Bárbaros -, marcando, na língua portuguesa, a terminologia ligada à agricultura (azeitona, laranja, açúcar, algodão, etc.), à guerra (atalaia, alferes, tambor, Alcácer, etc.), às ciências (álgebra, algarismo, etc.) e à construção (tabique, azulejo, etc.).


Com a expansão ultramarina, posteriormente, nos séculos XV e XVI, a língua portuguesa começou a ser falada em muitas regiões de África, Ásia e inclusive da América e, em consequência, foram incorporados vocábulos provenientes dessas origens. Exemplos disso são os termos (africanos) missanga, macaco, banana; leque, chá, chávena (asiáticos); chocolate, cacau, ananás, batata (americanos) (vide Castro, I., 2006; Teyssier, P., 1984).


É de referir, ainda, que, entre os séculos XV e XVIII, escritores como Gil Vicente e Camões usavam tanto o castelhano como o português nos seus textos, devido às relações literárias, políticas e comerciais existentes entre as duas nações ibéricas. Como legado de empréstimos espanhóis para o português ficaram, só para citar alguns, os termos bolero, castanholas, caudilho, moreno, galã, pandeiro.


Daí que toda a língua viva evolua no tempo consoante a realidade disponível e a adesão dos seus falantes às transformações.


No entanto, e na minha perspetiva, para que um vocábulo importado se possa usar com fundamento e legitimidade numa língua natural devem cumprir-se, em termos filológicos, duas condições:


1) Que não exista categoria gramatical ou estrutura (mais ou menos sintética) com equivalência semântica plena.


Justificar-se-ia, assim, o uso de palavras como lord (título nobiliárquico empregado no Reino Unido), samurai (soldados da aristocracia do Japão entre 1100 e 1867), outsourcing (ação de uma organização em obter mão-de-obra de fora da empresa) etc., mas já não se justificaria o emprego de termos que permitem tradução ou reconstrução simples de significados, como casting (audição), copyrights (direitos de autor), holding (grupo financeiro), tsunami (maremoto), carjacking/homejacking (roubo violento de carro/casa) ou low-cost (baixo custo);


2) Que nos escritos se usem itálico ou aspas para indicar a consciência da procedência linguística e a representação gráfica e/ou pronúncia, que são alheias às convenções da própria língua.


O sistema lexical do Português apresenta-se com opulência. Uma consulta ao Dicionário Houaiss permite verificar a existência de 228500 entradas lexicais. Ainda assim, têm-nos habituado ao uso constante e progressivo de expressões e palavras que passam facilmente a substituir o acervo lexical da língua nacional, mesmo quando este é bem preciso e expressivo.


Interessante é, a partir desta realidade, analisar as representações que este tipo de comportamento linguístico veicula sobre a língua materna, pois permitem vislumbrar contornos do imaginário coletivo, indefetivelmente ligado à superioridade de outras línguas. Sabe-se que alguns arremedos de erudição são uma tentação para muitos jornalistas. Como diria Joaquim Fidalgo, usam o inglês porque «[d]á um ar mais CableNewsNetwork…[6]». Mas, muitas vezes, por trás do uso desnecessário de termos estrangeiros está o preconceito linguístico, que não é mais do que um artifício para o exercício de outros preconceitos, sobretudo o da própria identidade.


O suposto prestígio de certas línguas, usadas qual fala universal anterior à maldição babélica, está dado por fatores externos a esta, mas acabam por interferir nas representações mentais sobre as outras. Assim, temos vindo a assistir à exposição de um espírito “anglo-colonizado” e de uma autoestima cultural debilitada, que acaba por justificar e perpetuar o snobismo e o “vil-linguismo” da vida contemporânea.


É o que, a meu ver, pretende defender a historiadora Beatriz Protti (2006, on-line), ao argumentar que «é complicado tentar mudar a língua por decreto. Se o falante e a sociedade que aquela língua representa forem valorizados, a língua também será valorizada».


O estrangeirismo estrutural (a “sintaxe importada”) constitui, quanto a mim, de entre estes fenómenos que citei, o menos aceitável. O hábito da leitura de textos em inglês pode contribuir para explicar, de algum modo, a utilização de certas expressões e construções sintáticas próprias da língua inglesa, investidas de roupagem vernácula: «é enfatizado» (it is emphasized); «em adição» (in addition) e «de todo» (at all).[7]


Na verdade, penso que, para promover uma doutrina gramatical que possa compensar o crescente desprestígio relacionado com o requinte da própria língua e a desvalorização da matéria-prima do património linguístico lusófono - o ritual de sonoridade e elocução que constituem o sentido sócio-histórico e político das nações que falam esta singular língua -, basta utilizar, com o primor que lhe é inerente, todo o legado cultural que o Português reflete, todos os matizes que a língua registra das comunidades em que ela assenta.


Assim, o uso de lexemas estrangeiros deve corresponder à necessidade de nomeação de conceitos ou realidades específicas de outro universo linguístico que não o português, até os registos obedecerem gráfica, morfológica e foneticamente à índole da língua nacional e assim entrarem no léxico já generalizado na comunidade culta respetiva (como a História já mostrou acontecer).

Esta é a riqueza que a importação linguística pode impulsionar. Países como Espanha e França reivindicam sem complexos a nobreza de traduzir ou adaptar a maioria das expressões de outra origem.


Com empenho intelectual e algum brio perfecionista pode optar-se pela utilidade e combater-se a futilidade dos usos linguísticos, que só vêm proclamar - com bastante injustiça histórica para a língua portuguesa - o empobrecimento de raciocínio e o défice cultural dos falantes. Como hispano-falante de origem, devo confessar que eu “adoro nomes/ nomes em ã/de coisas como rã e mã”[8].

 

[1] O "Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa" é um documento assinado em 1990 pela Academia das Ciências de Lisboa, Academia Brasileira de Letras e delegações de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, com a adesão da delegação de observadores da Galiza. Foi aprovado, para ratificação, na Assembleia da República Portuguesa a 4 de Junho de 1991 e publicado a 23 de Agosto de 1991 no Diário da República. Este Acordo foi alvo de dois protocolos modificativos (em 2000 e em 2004), o último dos quais permite a adesão de Timor Leste e estipula que o Acordo pode entrar em vigor quando três países o ratificarem. Até à atualidade, o Acordo de 1991 só é lei em Portugal.



[2] Admite-se Euronext, mas Lisbon?


[3] Um projeto de lei proíbe no Brasil o uso de expressões estrangeiras e há posturas desencontradas: os que defendem que os estrangeirismos têm o poder de “excluir” por serem inacessíveis a todos os cidadãos e os que afirmam que enriquecem o universo linguístico dos falantes.


[4] Cabe aqui sublinhar que o termo empréstimo é usado para referir estrangeirismos já incorporados na língua. Ou seja, «[o]s vocábulos e expressões que, após importação, sofrem alterações e/ou adaptações na língua de destino – quer a nível da grafia quer a nível da fonética». GONZÁLEZ, Irma Aurelia - “Estrangeirismo, empréstimo e neologismo”, in Matriz da Língua Portuguesa. Edit on Web, Edições Ciência e Cultura, 2005 (on-line).


[5] Aludo com ironia à antiga denominação da disciplina Língua Portuguesa, na época salazarista, em atenção às apreciações feitas no texto Ser cosmopolita não é “falar e pensar em inglês”, in http://rosaazul.org/congresso-internacional/cobertura-do-congresso/ser-cosmopolita-nao-e-falar-e-pensar-em-ingles/, no qual o autor defende que o recurso ao inglês na fala quotidiana vai acabar por “matar a pátria”...


[6] Leia-se o artigo de opinião do então Provedor do Leitor do PÚBLICO em A Vida das Palavras, disponível em: http://static.publico.clix.pt/nos/provedor/textos-fidalgo/prov20010422.html


[7] Existem, como é evidente, mais exemplos de influências estrangeiras na sintaxe da Língua Portuguesa. No entanto, parecem-me mais aceitáveis, do ponto de vista filológico, por obedecerem à idiossincrasia das línguas românicas, como: “fogão a gás” ou “entusiasmo por Eça de Queiroz”. Este tipo de construções preposicionadas é oriundo da língua francesa.



[8] Frase retirada do poema Língua, do músico e cantor brasileiro Caetano Veloso.


 

Irma A. González é Leitora e Responsável pelo Centro de Língua Portuguesa do Camões I.P. em Buenos Aires.


Licenciada em Línguas Modernas pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, na variante Português/Espanhol, concluiu, em 2005, o Mestrado em Linguística Portuguesa na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e, em 2009, o Segundo Ciclo, segundo o Processo de Bolonha, em Ensino de Português e de Espanhol na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.


É autora de "Instruções de Escrita. Direções de Trabalho e Critérios de Construção Textual", uma obra integralmente patrocinada pelo Ministério da Educação de Portugal, e de vários artigos científicos da área.


Atualmente, além de dinamizar seminários e conferências no âmbito da sua função como Leitora portuguesa na Argentina, frequenta o Terceiro Ciclo em Linguística Portuguesa na Universidade Aberta, Portugal.

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