Neste ensaio acadêmico o Prof. Mg. Daniel Filipe da Silva reflete sobre as relações que se estabelecem entre os atores intervenientes no processo de ensino e aprendizagem de uma língua estrangeira, em particular, sobre o poder potencial do professor. Para tal, aborda o conceito de poder e sua relação com questões ligadas à prática docente e as diversas teorias de ensino de uma LE.
Relações de poder no contexto de ensino de línguas estrangeiras (1)
Por Daniel Filipe da Silva (*)
Resumo
Se, por um lado, os estudos sobre o poder têm sido um ponto de interesse para muitas áreas de investigação social, por outro lado, não é uma grande revelação notar, como Nyberg (1981), que o seu potencial tem sido negligenciado em estudos sobre educação. Neste ensaio procurar-se-á favorecer uma visão instrumental do poder na análise do contexto de aprendizagem de uma língua estrangeira, problematizando e refletindo sobre as dinâmicas estabelecidas entre o professor e os alunos, considerando, como pano de fundo para estas relações, a ideologia e a abordagem veiculadas.
A primeira parte deste ensaio será dedicada ao conceito de poder, explicitando as noções e ideias que serão úteis ao longo da reflexão; seguidamente apresentar-se-á sumariamente os principais momentos e teorias de ensino e aprendizagem de uma língua estrangeira, desde o Método Gramática-Tradução à Abordagem Comunicativa, integrando, sempre que pertinente, uma reflexão sobre o tipo de poder que lhes é intrínseco; na terceira parte dissertar-se-á sobre o poder do professor a partir da tipologia das fontes de poder avançada por French e Raven (1958); na quarta parte, considerando que “autonomia” e “poder” são conceitos íntimos, a tónica cairá na autonomia dos alunos no processo de aprendizagem, nomeadamente sobre as estratégias de peer learning; terminar-se-á com algumas considerações genéricas sobre poder, ensino e aprendizagem.
Palavras-chave: Poder; Ensino de línguas estrangeiras; Relações entre pares de aprendizagem
O Poder
Não havendo o propósito de desenvolver uma reflexão exaustiva das acepções de poder adoptadas e debatidas ao longo de séculos nas diversas áreas de conhecimento, a opção feita nos parágrafos seguintes é a de selecionar apenas algumas das definições do conceito que melhor servem a análise sobre a relação entre professor e aluno na sala de aula no contexto da aprendizagem de uma língua estrangeira.
Da sociologia à ciência política, da economia à história, percorrendo todo o vasto espectro das ciências sociais, o conceito de poder está presente e é discutido, revestindo-se em muitos casos de grande importância para a compreensão da relação de forças entre sujeitos e para um entendimento mais aprofundado acerca do funcionamento de estruturas essenciais na sociedade. Não existe entre os teóricos e académicos das diversas áreas de conhecimento, ou entre os estudiosos dentro do mesmo campo de estudo, um consenso em relação àquilo que se entende pela noção de “poder”.
Também no âmbito do ensino e da língua o conceito de “poder” se revela importante, desde logo porque a língua e a linguagem são importantes veículos de promoção ou manutenção do poder, sendo essa realidade mais evidente em contextos como o da publicidade ou dos meios de comunicação, dado o nível de projeção mediática e a proeminência que estes podem conferir a algumas figuras em detrimento de outras, nomeadamente através das práticas discursivas utilizadas. A relação entre a língua e o poder estabelece-se frequentemente em duas esferas distintas: na esfera pública, quando referimos as instituições públicas (como as escolas), as estratégias publicitárias e os fóruns onde o discurso público está presente; e na esfera privada quando falamos de interações entre indivíduos que fazem também, muitas vezes, uso da língua como forma de persuadir ou dissuadir os seus interlocutores, colocando assim em prática o potencial de “poder” que lhes confere a ferramenta do discurso oral ou escrito.
Bielsa e O’Donnell (n.d.) sublinham, no âmbito das interações pessoais, o domínio das competências linguísticas, referindo a importância de se perceber quando e como intervir. Os mesmos autores apontam para um tipo de poder que resulta desta capacidade do indivíduo de dominar a prática discursiva, mas apontam também para outra componente do poder que deriva dos papéis sociais atribuídos ao indivíduo, uma abordagem que pode ser facilmente transposta para o contexto da sala de aula com vista a compreender de que forma o papel do professor é percepcionado por este e pelos alunos. Uma terceira fonte do “poder” corresponde, segundo Bielsa e O’Donnell, às relações que formamos com aqueles com quem falamos.
Estas ideias remetem, em última análise, para a definição “base” associada a Max Weber (1958), segundo a qual o poder é a capacidade de uma entidade de impor a sua vontade no âmbito de uma relação social apesar de eventuais resistências. Na mesma linha, considera-se que existe um exercício de poder sempre que um indivíduo proceda a alguma alteração no seu comportamento ou atitudes por influência de outro sujeito. Autores como French e Raven (1958) sublinham que tal definição se torna válida sobretudo quando as alterações operadas sejam um resultado direto da influência exercida pela outra pessoa, e não quando se verifique uma combinação de fatores que possa ter exercido uma influência adicional no processo de alteração de comportamento. Os autores apresentam uma noção de poder articulada com a noção de influência social. De forma simplificada, o poder é entendido como o potencial de influência que por sua vez se compreende como a efetivação do poder com consequências de mudança.
French e Raven (1958) desenvolveram uma tipologia composta por cinco potenciais bases do poder: poder coercivo, poder legítimo, poder de recompensa, poder de referência e poder de especialista. O poder coercivo diz respeito à possibilidade de punição sobre outrem de forma a condicionar ou alterar o seu comportamento; o poder legítimo relaciona-se com a crença na legitimidade que uma parte dominada confere à parte dominante no seu exercício de dominação, existindo em função de aspectos culturais e associa-se à posição que se ocupa na estrutura social; o poder de recompensa implica que de uma parte exista a percepção das vantagens que a outra parte lhe pode oferecer em função do seu comportamento; o poder de referência substancia-se na identificação que uma das partes encontra noutra e está intimamente ligado a uma ideia de desejo de pertença; por fim, o poder de especialista diz respeito ao domínio de conhecimento que uma das partes reconhece na outra, em função do seu próprio conhecimento e interesse.
Além destas bases ou fontes de poder definidas por French e Raven (1958), um conjunto de elementos integra o imaginário comum enquanto locais emblemáticos de poder, como por exemplo os tribunais (poder executivo), os parlamentos (poder legislativo) ou as prisões (poder judicial), mas existem também muitos outros espaços ou plataformas onde o poder é exercido, nomeadamente a imprensa, considerada amiúde o “quarto poder”. Outros dos principais núcleos de poder que podemos identificar na sociedade são a empresa, a igreja, a família ou a instituição de ensino, que constitui aqui o nosso objeto de análise.
De acordo com a Teoria da Escolha Racional, o poder existe sob diferentes formatos, entre os quais o “poder sobre” (power over), que é, provavelmente, a ideia mais comumente associada ao conceito de poder. Contudo, existe também o “poder interior” (power within) cujo foco é colocado no indivíduo e na sua ação em relação a si mesmo, procurando atingir os objetivos que estabelece e melhorar até atingir a excelência; ou o “poder conjunto” (power with), que se conquista quando se trabalha em cooperação com outros (Erwin, 2004).
Friedberg e Crozier (1980) entendem que numa relação de poder, apesar de se poder revelar assimétrica na sua distribuição, existe uma ideia de reciprocidade e influência mútua que permite uma base negocial potencial. Os autores defendem que o poder constitui um mecanismo de interação social que utilizamos e exploramos diariamente nas nossas interações com os outros. Considerando o Homem na sua qualidade social, irredutível a uma compartimentação estanque nas estruturas de poder organizadas, os atores atuam em campos informais explorando as suas possibilidades de dominação. O poder é deste ponto de vista um produto eminentemente relacional, mais do que um atributo consignado à parte que se encontra na posição de domínio. Os autores sustentam a ideia de que “poder” e “incerteza” são conceitos íntimos na medida em que, atuando nas zonas de incerteza, um ator negoceia o seu domínio sobre os outros (Friedberg & Crozier, 1980). Isto é, mesmo em configurações nas quais se prevê o estrito funcionamento do poder, com base numa hierarquia estabelecida, existem zonas de incerteza (e.g. técnicas ou culturais) em que os intervenientes procuram negociar e maximizar a sua base de poder.
Hofstede (1986) desenvolveu o conceito de “distância do poder”, que se refere à expectativa e aceitação, por parte dos membros com menor poder dentro de instituições e organizações, de que o poder esteja distribuído de forma desigual entre os vários membros. Tendo em conta as premissas de Hofstede (1986), podemos facilmente compreender de que forma a cultura dominante numa determinada sociedade influencia o tipo de abordagens de ensino adoptadas, bem como a relação de poder estabelecida dentro da sala de aula entre o professor e os alunos, e de que forma tal relação é aceite, ou não, em função do maior ou menor grau de distância do poder.
Embora o modelo de distância do poder desenvolvido por Hofstede tenha sido inicialmente concebido para analisar o ambiente de organizações empresariais, afigura-se lógico que o mesmo possa ser aplicado para compreender a dinâmica que acontece numa aula de língua estrangeira.
Assim, segundo o autor, em culturas de elevada distância do poder a figura de autoridade que é representada no seio familiar pelos pais, ou no contexto empresarial pelo gestor, é transferida, em contexto de aprendizagem escolar, para o professor, em relação a quem se verifica uma forte dependência por parte dos alunos apesar de uma significativa distância emocional. Por outro lado, em contextos culturais de “baixa distância do poder”, é encorajada a independência dos alunos, tal como a independência dos filhos no seio familiar. Nestes contextos os estudantes são tratados praticamente em pé de igualdade com o professor, reduzindo consideravelmente a distância emocional existente entre ambos (Hofstede, 1986). Nas culturas marcadas por uma baixa distância do poder o professor é um facilitador dos recursos existentes, mas a procura da verdade e do conhecimento – e, consequentemente, a qualidade da aprendizagem e a obtenção de bons resultados – depende em larga medida do esforço levado a cabo pelos alunos, cuja dependência vai diminuindo à medida que avançam no seu percurso escolar (Hofstede, 1986).
Segundo o modelo de Hofstede, nas culturas de baixa distância do poder é esperada uma participação ativa por parte de todos os membros, e a obediência dos subordinados em relação aos seus superiores é desvalorizada, ao contrário das culturas de alta distância do poder, em que um estilo de gestão diretivo tende a produzir maior satisfação entre os subordinados, que se consideram essencialmente iguais aos seus superiores aceitando no entanto a diferença de papéis que lhes são atribuídos (Hofstede, 1986).
Ultrapassando os tradicionais limites da discussão sobre o “poder”, a ideia de poder introduzida por Foucault (1991) afasta-se das noções convencionais e representa uma inovação ou até mesmo uma ideia de ruptura, ao defender que poder está difundido por toda a parte, disperso e difuso, ao invés de estar concentrado nas mãos de alguns que conseguem garanti-lo por via de episódios de dominação ou coerção; que é incorporado mais do que possuído; e que é do âmbito do discurso, sendo um elemento que contribui para a formação dos indivíduos em vez de ser desenvolvido por eles (Foucault, 1991). Trata-se aqui de uma espécie de “meta-poder” ou “regime de verdade” que permeia a sociedade e que está em constante mutação. Em Foucault, a noção de poder ligada ao ensino é evidenciada também no contexto desses “regimes de verdade”, que são, segundo o autor, resultado de instituições e discursos científicos e que são constantemente reforçados e redefinidos através de vários canais, nomeadamente através do sistema educacional. Embora reconheça os poderes formais presentes na sociedade, Foucault considera que existem diversas formas de poder que circulam na sociedade, podendo estas emanar das convencionais instituições disciplinares entre as quais se encontra a escola, tendo nesse âmbito cunhado a noção de “poder disciplinar”.
Não obstante uma tendencial associação da noção de poder com ideias de controlo, repressão ou submissão, Foucault introduz uma perspectiva mais positiva do “poder” nas sociedades. O chamado “poder disciplinar” de Foucault refere-se a um tipo de poder que terá sido introduzido nos sistemas administrativos e serviços sociais criados na Europa no século XVIII em instituições como prisões, escolas ou hospitais. Os sistemas de vigilância aplicados nestes espaços deixaram de requerer o acesso ao uso da força uma vez que as pessoas aprenderam a disciplinar-se e a comportar-se de forma correspondente ao esperado.
Como podemos constatar nesta amostra de ideias e orientações, o conceito de poder é útil para uma compreensão aprofundada das relações que se estabelecem entre atores que, de modo mais ou menos formal, se organizam e relacionam numa dada conjuntura de dominação.
Abordagens de Ensino de Língua Estrangeira
Método Gramática–Tradução
A aprendizagem de uma língua estrangeira esteve, durante muitos séculos, isenta de qualquer metodologia elaborada, sucedendo nos mesmos moldes de aprendizagem do Latim ou do Grego Clássico. O chamado Método Gramática-Tradução, assim designado como modelo de ensino de língua estrangeira no século XIX, consiste, em linhas gerais, na mesma metodologia de ensino prevalecente até então.
O método caracteriza-se pelo privilégio da utilização da língua nativa em detrimento da língua alvo; pela memorização de longas listas de vocabulário isolado; por extensas e exaustivas explicações gramaticais; pela leitura de textos clássicos de dificuldade elevada desde uma fase muito precoce da aprendizagem; por pouca ou nenhuma atenção prestada ao conteúdo dos textos, que somente servem para tratar questões gramaticais; por exercícios de tradução e retroversão e por pouca, ou nenhuma, atenção conferida à pronúncia (Brown, 2001).
Neste método, o peso da componente escrita é muito notório, aspecto que resulta numa inadequação estrutural do projeto de aprendizagem, dado que as mesmas práticas utilizadas na aprendizagem de línguas mortas são transferidas para a aprendizagem de línguas vivas. Não será difícil encontrar reproduções deste método em certas práticas vigentes, uma vez que aquilo que terá sido uma total ausência de perspectivação metodológica face ao novo objeto de conhecimento é, não raras vezes, replicado, indiciando uma visão de língua desvinculada dos seus propósitos sociais.
Tendo em conta o carácter eminentemente teórico do Método Gramática-tradução, é compreensível que em sala de aula, inerentes a este modelo, se encontrem práticas pouco, ou nada, profícuas para o desenvolvimento de formas positivas de poder associadas a competências linguísticas (Bielsa e O’Donnell (n.d.)). Com efeito, e considerando também as propostas avançadas por Friedberg e Crozier (1980), se em sala de aula a oralidade não vai para lá de sequências expositivas sobre gramática (na língua nativa), as possibilidades de desenvolvimento de um poder efetivo em campo informais, fruto do aspecto mais ou menos relacional da aprendizagem, são forçosamente diminutas. O enfoque na componente escrita, com atividades de aprendizagem de cariz necessariamente individual, e a total ausência de uma perspectiva de desenvolvimento de competências comunicativas é um aspecto altamente limitador do ponto de vista do esbatimento da assimetria de poder entre aluno e professor, que alarga a sua fonte de poder institucional face aos alunos por meio da interdição do discurso (Foucault, 1997).
O Método de Série
Como nota Brown (2001), muito embora poucos créditos sejam atribuídos ao francês François Gouin, este revelou importantes conclusões que precedem o Método Direto. Este professor de Latim projetou a ideia de que a aprendizagem de línguas é, em primeiro lugar, uma questão de transformar as percepções em concepções. Fundou o Método de Série que consiste em ensinar a língua sem recurso à tradução e livre de regras gramaticais. Gouin ensinava, na língua alvo, frases de fácil compreensão que continham um número considerável de propriedades gramaticais, itens de vocabulário e sequências de palavras.
A língua era ensinada de forma a ser facilmente compreendida, armazenada, relembrada e, aspecto muito importante, a relacionar-se com a realidade (Brown, 2001). Ao contrário do Método Gramática-Tradução, o Método de Série coloca a tónica na componente oral da língua uma vez que se baseia na ideia de que aprender uma língua estrangeira de forma eficaz equivale ao processo de aprendizagem da língua materna na infância (Brown, 2001).
Não obstante o que sabemos hoje sobre “aquisição” e “aprendizagem”, Gouin soube servir-se das potencialidades da recursividade linguística e, sobretudo, compreendeu a dimensão contraproducente que existe na aprendizagem de dados desvinculados de um contexto real.
O Método Direto
O Método Direto, designação jamais adoptada por Berlitz, considerado um dos seus principais impulsionadores, emerge na viragem do século XIX e aproxima-se muito das propostas avançadas por Gouin, em particular na ideia de que a aprendizagem de uma segunda língua deve assemelhar-se à aquisição da língua materna pelas crianças (Brown, 2001).
Entre os aspectos que caracterizam este método destacamos o trabalho da competência de comunicação oral por meio de aulas lecionadas na língua alvo, em que se procura incutir vocabulário e frases do quotidiano. Existe um grande enfoque nas situações de uso e em mostrar ou demonstrar, sempre que possível, o objeto da aprendizagem. Além disso, a gramática é ensinada de forma indutiva de modo a não fatigar o aprendente (Brown, 2011).
Este método não teve grande sucesso na escola pública por constrangimentos orçamentais, logísticos e formativos. Entrou em declínio a partir da segunda década do século XX, retomando-se o velho Método Gramática-Tradução (Brown, 2001).
Embora a oralidade não seja um sinónimo de comunicação e de maior equidade do poder, o Método Direto parece ajustar-se melhor a uma possibilidade de desenvolvimento de uma relação menos vertical entre aluno e professor. As estratégias particularmente focadas no uso da oralidade, contextualmente situado e focado no quotidiano, com os objetivos de melhorar os aspectos da compreensão e da expressão, assim como o número reduzido de alunos que compõem a turma, são mais propensas ao desenvolvimento de formas de poder informais, na acepção de Friedberg e Crozier (1980), uma vez as possibilidades de desenvolvimento de zonas de incerteza são mais fortes. O desenvolvimento deste poder informal, ainda que subtil, só é possível porque em sala de aula o silêncio da componente escrita, caracterizadora do Método Gramática-Tradução, esvai-se, tomando lugar as atividades de pergunta-resposta ou de simulações em contextos de uso, envolvendo o aluno de forma mais ativa na aprendizagem. O uso da língua é, neste sentido, uma forma de interação, mas também de ação, uma vez que a sua produção reveste-se de significado real e tem, por isso, consequências nas dinâmicas relacionais (Fairclough, 2001).
O Método Audiolingual
Em 1942, com o objetivo de aprender de forma muito rápida as línguas dos aliados e dos inimigos no contexto da II Grande Guerra, os Estados Unidos da América criaram o programa Army Specialized Training Program (ASTP). O Método do Informante, que havia sido desenvolvido por Bloomfield e outros linguistas, foi aplicado neste programa que previa aulas de dez horas por dia, seis dias por semana em turmas muito pequenas e nas quais a componente oral era desenvolvida de forma exaustiva. A verdade é que o método surtiu os efeitos desejados e tornou-se muito popular, a ponto de se discutir a sua validade de aplicabilidade em âmbito académico (Richards & Rodgers, 2006).
Fries e os seus colegas sugerem uma visão estruturalista do ensino da língua. Rejeitam as ideias de exposição à língua, como sucede no Método Direto, e concebem a ideia do desenvolvimento das questões formais, tais como a gramática ou a pronúncia, como ponto de partida para a aprendizagem da língua. Fries defende que os constrangimentos de aprendizagem de uma língua estrangeira estão relacionados com as diferenças estruturais entre a língua nativa e a língua alvo. Assim, uma análise contrastiva entre as duas línguas permite compreender e antever interferências na aprendizagem e solucioná-las mediante a criação de materiais didáticos apropriados (Richards & Rodgers, 1999).
Em clima de Guerra Fria, os Estados Unidos voltam a colocar a questão de uma aprendizagem rápida e profícua de línguas estrangeiras. Com o lançamento do primeiro satélite Russo em 1957, o Governo Americano sentiu a necessidade de investir no desenvolvimento da aprendizagem de línguas estrangeiras para fins estratégico-militares e para evitar o isolamento face aos avanços científicos de outros países. O programa adoptado no exército, a visão da gramática estrutural de Fries e os desenvolvimentos da psicologia Behaviorista de Skinner contribuíram para o desenvolvimento do Método Audiolingual, cunhado por Nelson Brooks em 1964 (Richards & Rodgers, 1999).
O Método Audiolingual caracteriza-se pela tónica na componente oral, veiculada na língua alvo, e toma particular atenção à questão da pronúncia e da rápida compreensão dos enunciados; baseia-se em exercícios de repetição e substituição de frases estruturais, introduzindo a gramática da língua de forma implícita (Richards & Rodgers, 1999).
Do ponto de vista de um olhar sobre o poder, interessa-nos sobretudo por ser pioneiro na contemplação de uma dimensão intercultural associada ao ensino e aprendizagem de língua estrangeira. A análise da questão cultural reveste-se de particular importância quando se trata do ensino de língua, uma vez que em grande parte dos casos, aluno e professor provêm de culturas distintas, o que pode colocar obstáculos acrescidos à comunicação entre ambos. Estes obstáculos podem estar relacionados com diferentes posições sociais do professor e do aluno nas sociedades de origem de cada um, com as expectativas em relação à forma de aprendizagem por parte do aluno ou em relação ao tipo de interação que se pretende entre professor e aluno. Para solucionar esta lacuna cultural no contexto de aprendizagem, o foco deve incidir sobre a figura do professor, pois é necessário que este esteja consciente da sua própria cultura e das realidades potenciais de culturas diferentes, nas quais a aprendizagem pode resultar de processos diferentes. O professor deve ser um comunicador cultural qualificado e fazer uso do poder que a sua posição lhe confere para mediar os processos e motivar todos os seus alunos, independentemente dos seus contextos culturais, para a aprendizagem da língua que pretende ensinar (Hofstede, 1986).
Outras Abordagens de Ensino de Língua Estrangeira
Nas décadas de 60 e 70 surgem métodos de ensino de língua que, diferindo na forma de entender a aprendizagem e o funcionamento cognitivo, tomam práticas muito específicas.
O Cognitive Code Learning surge nos anos 60 como alternativa ao Método Audiolingual, prevalente na época, e pode ser visto como um modelo atualizado do Método Gramática-Tradução. Assenta nas teorias da gramática generativa de Chomsky e pressupõe um ensino da língua a partir da conjugação de práticas indutivas e dedutivas (Hinkel, 2011).
Outros métodos emergiram, ainda que pouco conhecidos nos dias de hoje, mas que revelam um momento em que psicologia e pedagogia são parte da mesma investigação. A Suggestopedia, ligada à ideia da “sugestão” como a forma mais eficaz de aprender a língua; o The Silent Way, centrado no aluno e no aspecto da concentração; o Total Physical Response, no qual o movimento associado a comandos de voz previa uma aprendizagem mais eficiente; ou a abordagem naturalista, esta mais conhecida, e que emerge nos anos 80 sustentando uma ideia de aprendizagem natural favorecida por uma elevada exposição à língua alvo (Brown, 2000).
A Abordagem Comunicativa
A Abordagem Comunicativa trouxe novas propostas ao ensino e aprendizagem de uma língua estrangeira, favorecidas por uma visão da língua com base no seu uso e nos seus propósitos comunicativos, configurações que modificariam significativamente as relações entre os professores, os alunos e o conhecimento, e que, além disto, criariam novas necessidades de adequação em sala de aula como sintoma e suporte das novas dinâmicas estabelecidas.
Desde a sua emergência, na década de 70 do século XX, que a Abordagem Comunicativa do ensino de línguas tem sido alvo de interesse por parte de muitos professores e investigadores sem, contudo, estar isenta de equívocos entre aqueles que rejeitam sumariamente as suas potencialidades metodológicas, aqueles que simplesmente as ignoram, e, não raro, entre os que dizem pô-la em prática nas suas salas de aula. Como nota Richards (2006), muitos professores, quando questionados sobre a metodologia que empregam nas suas aulas, consideram utilizar uma perspectiva comunicativa do ensino de línguas, encontrando as mais diversas explicações para esta assumpção. De facto, tanto em sala de aula como na capa dos mais recentes manuais escolares de ensino de língua estrangeira, a palavra “comunicativa” parece ganhar um relevo crescente. Importa, no entanto, compreender, tanto quanto possível, o que significa uma “abordagem comunicativa” do ensino da língua assim como os conceitos que lhe são inerentes sob pena de, como nota Swarbrick (2003), se perder os seus propósitos e significados reais, contribuindo para o enraizamento do “cliché”.
Cabe reconhecer a dificuldade em definir de forma fechada e definitiva o que é uma Abordagem Comunicativa do ensino da língua, tendo em conta a sua natureza eclética, formada a partir de disposições gerais sobre a língua e o ensino. Não obstante esta dificuldade, tentaremos nos próximos parágrafos dar conta das principais características que norteiam a Abordagem Comunicativa.
Já o Audiolinguismo se encontrava em pleno declínio quando, na década de 60, Chomsky estabeleceu a diferença entre “competência” e “desempenho”, referindo-se à primeira como o conhecimento da gramática e outros aspectos da língua que permitem aos falantes produzir frases corretas e à segunda como o uso da língua propriamente dito (Canale, 1980). Hymes viria a retomar esta distinção propondo o conceito de “competência” como conhecimento gramatical mas também como conhecimento do seu uso nas mais variadas situações de comunicação, favorecendo uma visão do conceito no âmbito da sociolinguística (Richard, 2006).
O estabelecimento da noção de “competência comunicativa” constituiu um ponto um ponto de viragem sobre a visão da língua, do seu ensino e da sua aprendizagem. É na senda desta viragem que se desenvolve a Abordagem Comunicativa, comprometida com os propósitos e finalidades do uso da língua. Canale e Swain (1980) distinguem quatro subdivisões na competência comunicativa: a “competência gramatical”, que diz respeito ao conhecimento do código linguístico; a “competência sociolinguística” que implica o conhecimento dos padrões sociais determinantes para a adequação da língua; a “competência discursiva”, que está relacionada com a capacidade de coesão e coerência dos enunciados de forma a constituir significados; e a “competência estratégica” que diz respeito à capacidade do falante de encontrar estratégias que compensem as lacunas do conhecimento da língua (Richard, 2006).
Assim, por competência comunicativa entende-se saber usar a língua em função de diferentes contextos e finalidades, compreender e produzir diferentes tipos de texto, bem como a capacidade de manter a conversação com vista a atingir o entendimento comunicativo, independentemente das estratégias adoptadas para este propósito.
A Abordagem Comunicativa privilegia a aprendizagem por “tarefas” nas quais existe uma ideia de finalidade, por oposição aos exercícios clássicos, e a criação de situações comunicacionais o mais próximas possível do real e do quotidiano, favorecendo uma aprendizagem mais estimulante e significativa (leia-se “com significado”). As atividades desenvolvidas em aula são eminentemente adaptáveis, tomando em consideração os propósitos e finalidades pelos quais o aluno está a aprender a língua, existindo também uma valorização da partilha de conhecimento e experiências em sala de aula (Brown, 2001). Outro aspecto de especial importância na Abordagem Comunicativa é o uso de formas e materiais diversificados de ensinar a língua (Widdowson, 1978) e, assim, as situações de uso. Ainda no que respeita aos materiais, a preferência recai sobre os autênticos uma vez que, como nota Kramsch (1993), a experiência do contato com tipos de “texto” não artificiais ou modificados permite criar no aprendente uma maior familiaridade e prazer com o uso real língua.
Do ponto de vista da configuração do poder, a Abordagem Comunicativa parece ser o modelo que mais propicia formas positivas de poder. Tendo em conta que existe uma especial atenção dada à motivação e interesse do aluno na aprendizagem da língua (Richard, 2006), o professor é encarado pelos aprendentes como um “facilitador” da aprendizagem, desenvolvendo-se nesta relação uma forma de poder mais próxima do “poder conjunto” (power with) (Erwin, 2004).
Outro aspecto que caracteriza a Abordagem Comunicativa, e que tem repercussões na forma como aluno e professor se relacionam, é a forma de lidar com o erro, encarando-o como uma parte natural do processo de aprendizagem e como uma oportunidade de consolidação de conhecimento. Embora não seja desejável que o aluno erre, esta mudança de atitude face ao erro exclui a existência de uma forma negativa de poder, presente nas formas tradicionais de ensino, associada ao poder coercivo (French e Raven, 1958).
Do ponto de vista da comunicação, contrariamente às abordagens tradicionalistas, existe uma ideia de democratização do discurso, aspecto que é reforçado pelo seu carácter tendencialmente conversacional. O fenómeno conversacional, que acontece cada vez mais em sala de aula, mas também noutras plataformas de veiculação de poder, como os média, contrariamente a processos comunicativos formais, tende a ser um fator de anulação dos “marcadores de poder”, (Fairclough, 2001), aspecto que pode explicar de que forma o discurso de uma aula comunicativa contribui para o esbatimento da assimetria relacional entre professor e aprendente.
(1) Pela extensão do trabalho, nesta edição da Revista LuSofia publicaremos a parte inicial e no próximo número a parte final e as conclusões.
*Sobre o autor
Daniel Filipe da Silva de Jesus concluiu uma licenciatura em estudos portugueses e um mestrado em Língua e Cultura Portuguesa LE/L2 pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. É doutorando do curso de Ciências da Cultura na Universidade do Minho desenvolvendo a sua investigação sobre os aspetos associados à identidade e à cultura em Macau. Exerceu atividade docente em escolas de línguas, no Colégio Cesário Verde, no Instituto de Língua e Cultura Portuguesa da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e no Instituto Português do Oriente (Macau). Atualmente, é docente da Licenciatura em Português da Universidade da Cidade de Macau.
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