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Alejandra Leoni

O percurso de leitura literária na formação de professores: uma experiência pedagógica


No presente artigo, a Prof. Alejandra Leoni, docente na área de Literatura do curso de formação de professores de português na ENS Lenguas Vivas "Sofía Broquen de Spangenberg" e no IES Lenguas Vivas "Juan Ramón Fernández", compartilha uma série de reflexões sobre a experiência ensinando e avaliando a Literatura em Língua Portuguesa na formação docente. Este trabalho foi socializado na VII Jornada de Educação e Tradução da ENSLV "S.B.S". e hoje faz parte da terceira edição de LuSofia.

 

O percurso de leitura literária na formação de professores: uma experiência pedagógica



Queria hoje compartilhar com vocês o fruto da reflexão sobre a minha prática pedagógica, especificamente com relação ao ensino e a avaliação da Literatura em Língua Portuguesa no Curso de Formação de Professores de Português.


E gostaria de começar trazendo aqui uns fragmentos do poema “Isto”, do meu querido Fernando Pessoa, onde são referidos os modos de sentir do autor e do leitor... Ele escreve: “Dizem que finjo ou minto/Tudo que escrevo. Não./Eu simplesmente sinto/Com a imaginação./Não uso o coração”, para depois acabar o poema com a famosa sentença: “Sentir? Sinta quem lê!”.

Acho que, aí, o poeta já estava antecipando o derroteiro que viriam a ter os estudos literários muitos anos depois da escrita desses versos, pois a sua primeira publicação foi no ano 1933, na revista Presença.


E é precisamente por esse caminho que a gente foi... Começando a prestar cada vez mais atenção ao papel que o leitor tem na construção de sentido do texto, neste caso literário, é que fui torcendo o ângulo da minha metodologia de trabalho. E é essa viragem que vou tentar descrever para vocês.

Acompanhando a tríade – autor, texto, leitor – sem dúvida, o ponto de partida do meu trabalho como professora de Literatura Portuguesa, no ano 1992, foi o enfoque periodológico, que privilegiava o estudo dos autores numa sucessão estético-cronológica. Anos mais tarde, surgiu em mim o interesse por uma análise mais apurada das especificidades de construção do texto – sem necessariamente aderir à corrente formalista – mas sim trabalhando com ferramentas metodológicas que nos permitissem descrever melhor os procedimentos de construção e reparar na singularidade de composição das produções literárias, sem abandonar o enfoque anterior, mas incorporando uma nova maneira de trabalhar com a Literatura, reivindicando, agora, o lugar das obras, a particular estruturação dos textos.


Mas chegou o ano 2007, ano em que freqüentei, no Instituto Superior del Profesorado “Dr. Joaquín V. González”, a oficina “Lectura y Experiencia: Formación de Docentes Iniciadores en la Lectura Literaria”, organizada pelas professoras Elisa Salzmann e Isabel Vassallo. Esse curso foi de grande valor formativo para mim, não só de um ponto de vista acadêmico mas também vivencial, e constituiu uma inesquecível experiência, no sentido de poder tornar conscientes e compartilhar com o grupo, constituído por professores de literatura, os nossos percursos de leitura e as nossas propostas de abordagem de diversos textos literários, com o apoio de uma bibliografia teórica, sugerida pelas professoras da oficina.


Surgiram então muitíssimas perguntas com relação à minha prática docente e projetos, de muito difícil - quase impossível – aplicação, vista a rigidez do nosso sistema educacional, considerava eu...


Comecei a me perguntar... então, que significa “ensinar” literatura? Ensinar a ler textos literários? Ensinar história da literatura? Que acontece, no nosso sistema de educação formal, com o prazer pela leitura? As análises literárias aumentam esse prazer ou acabam com ele?


E então pensei... tudo bem, mas mesmo aderindo a autores e teorias que levam em especial consideração o papel ativo do receptor na interpretação do texto, neste caso o literário, mesmo trabalhando com o Barthes de “O rumor da língua”, com o Bruner de “Realidade Mental e Mundos Possíveis” ou com o Eco de “Obra Aberta”, mesmo seguindo autores como Soares, Goodman, Silva, ou Marcuschi, que nos fornecem ferramentas teóricas para incluir, nas nossas práticas, a reflexão metacognitiva do percurso de leitura, será possível gerar nas nossas aulas de Literatura, um espaço de verdadeiro respeito pela diversidade de opiniões? Com que estratégias podemos tornar evidente que sempre existem outras abordagens possíveis? Acompanhando, então, o pensamento de Umberto Eco, mas sem chegar a adotar o conceito de “semiose ilimitada”, pois concordamos com Marcuschi em que nem todas as interpretações são adequadas, pois também existem leituras que não se sustentam, como contribuir a que o nosso aluno perca o medo ao indeterminado, ao inacabado, ao aberto, a uma pluralidade imprevisível de possíveis interpretações, todas válidas?


Como conseguir que os nossos alunos confiem nas suas hipóteses de leitura e aprendam a defendê-las, se depois nós próprios aceitamos que elas tomem outros rumos e adquiram novos matizes, ressignificando elementos numa segunda ou em posteriores leituras? Como propiciar o perspectivismo filosófico, capaz de integrar vários pontos de vista cognitivos, num sistema de ensino tradicionalmente maniqueísta em que a avaliação ainda fica limitada aos pares de opostos verdadeiro/falso ou correto/incorreto? Com que textos ou com que posicionamento teórico conseguir uma real polifonia que deixe ecoar em nós os argumentos ou as visões, leituras, dos outros?


O escritor, poeta e ensaísta português David Mourão-Ferreira me deu a resposta. No seu artigo “Para uma visão poligonal da literatura”, publicado em “Tópicos Recuperados” no ano 1992, ele propõe entender a literatura como uma realidade poliédrica que deveria poder ser contemplada, estudada, em todas as suas faces. O autor revisa diferentes tipos de crítica literária feitas sob várias perspectivas: lingüística, sociológica, estilística, histórica, psicológica, entre outras. Então ele coloca a pergunta: até que ponto estamos preparados para uma visão poligonal da literatura, ou até que ponto nos interessa examinar todas as suas caras? Esta concepção viria justificar a singularidade de cada leitura literária, de cada experiência estética.


Já sabemos que é praticamente impossível sair imperturbável, o mesmo, depois do contato com o texto literário. Algo novo nos é revelado ou nos faz estremecer. Algo em nós se modifica. Portas que não conhecíamos se abrem. E essa experiência fica potencializada, multiplicada quando compartilhamos, com os outros, o resultado de nossas leituras. O mundo já não é mais um universo fechado, unívoco, monológico, mas o sutil e harmonioso convívio de diferentes mundos, todos eles possíveis.


Pois é, na escuta atenta da interpretação do nosso colega, no respeito pela opinião diferente, no interesse por compreender um ponto de vista inclusive oposto ao nosso, estamo-nos aproximando, cada vez mais, dessa visão poligonal de que falava Mourão-Ferreira. Podemos ver que existem outras formas de “ler” literatura, que não há uma única leitura e menos ainda uma considerada “a correta”, mas uma mega leitura que se constrói – polifônicamente – com a contribuição de cada uma das vozes, visto que, de acordo com Barthes, “a leitura literária deve ser feita acompanhando a sua essencial pluralidade” e que sempre é desejável trabalhar com a maior quantidade de sentidos possíveis que cada polissêmico texto literário nos oferece.


E na viragem metodológica que vinha descrevendo, a visão poligonal do fenômeno literário e a reflexão metacognitiva sobre o singular percurso de leitura literária, modificaram o meu modo de entender o ensino da literatura.


Porque se “ensinar” também significa “mostrar” – gosto dessa acepção do termo – então, ensinar literatura seria mostrar aos alunos que existem várias ferramentas de análise que podem ser utilizadas segundo as especificidades dos textos (gênero, época, estética) e que existem também várias perspectivas, abordagens possíveis, diferentes lugares em que nos podemos posicionar para olhar para um mesmo objeto, e que o papel do professor não é exercer um excessivo controle da leitura dos seus alunos e, muito menos ainda, impor linhas de leitura que levem a uma única interpretação, mas abrir o leque de possibilidades interpretativas sempre que justificadas pelo próprio texto. Daí a importância que eu dou à liberdade na hora de o aluno escolher a temática, o método, o modo em que vai observar, analisar e descrever o fenômeno artístico.


Ensinar literatura seria, se quiser, dar exemplos de comparações de estéticas entre diferentes linguagens artísticas e também oferecer materiais teóricos para realizar um exame metacognitivo que permita reconhecer o nosso particular modo de ler, as nossas inferências, a nossa singular maneira de nos relacionar com o texto e a importância do nosso papel, como leitores, para a efetiva atualização da obra literária. Materiais todos, enfim, que nos sirvam tanto para descrever o nosso percurso de leitura como para sustentar as nossas apreciações sobre a obra literária.


Ensinar literatura seria também mostrar a nossa paixão pela leitura, pela poesia, por alguns poetas, pelas análises formais, pelos paradoxos, pelos quiasmos e até – também - por longas narrativas. Mostrar a nossa paixão, abertamente, por que não? ... que isso também se contagia... e ter o ouvido atento para o assombro do outro, um ouvido capaz, talvez, ... de ouvir estrelas?


Pois é, muito lindo em teoria, mas que determinações tomar na hora de avaliar o trabalho dos alunos? Como é que esse enfoque tão aberto me permite avaliar? Posso “avaliar” as leituras? Ou que elementos estão sendo levados em consideração quando digo que estou avaliando o percurso de leitura literária de um aluno?


E uma quarta feira que já nem lembro quando é que foi, reparei que já estava efetivamente transitando por esse caminho da experiência, do olhar poligonal e da teoria da recepção literária, que aquele louco projeto de difícil aplicação, considerava eu, estava sendo, finalmente, realizado. A incorporação do terceiro elemento da tríade tornou-se evidente quando me encontrei respondendo mais ou menos desta maneira à consulta de uma aluna sobre o trabalho final que estava preparando: “A bibliografia consultada está muito bem trabalhada e citada, os exemplos escolhidos da obra literária são significativos, mas gostaria de ouvir a tua voz, não a dos autores teóricos. Quero conhecer a tua opinião a respeito, que foi que te levou a escolher esse assunto, a fazer esse recorte. Quero saber como foi o percurso de leitura que você fez. Os autores teóricos só devem aparecer como uma citação de autoridade que venha reforçar e dar mais sustento à tua leitura, à tua construção, e não ao contrário.”


Então, como integrar o lado sensível ao mais racional, de tal forma que já não possam ser distinguidos os limites? Como conseguir fazer dialogar a paixão, o sentimento, com a reflexão metacognitiva? Encontrar o modo de expor reflexões, avaliações críticas, impressões pessoais... Utilizar uma linguagem formal para defender idéias próprias apoiadas em outros autores corretamente citados e referenciados e em exemplos representativos das obras comentadas...


O ensaio acadêmico foi o tipo textual que melhor se adaptou às nossas necessidades. Visto que supõe interpretação e análise sobre um tema, que se trata de um texto opinativo não muito extenso, que privilegia a originalidade, a criatividade, e porque se assenta na subjetividade do seu autor, achamos, neste tipo de ensaio, a ferramenta de avaliação que, por respeitar a individual experiência de leitura, neste caso, dos alunos futuros professores, melhor traduz a nossa concepção pedagógica. “A única coisa que deve ser controlada na inferenciação é a falsidade ou a incompatibilidade do resultado com os elementos explícitos do texto”, acrescentaria aqui Marcuschi...


Com esta metodologia de trabalho – poligonal e de reflexão metacognitiva – e com uma avaliação que respeita a subjetividade do leitor, pensamos estar contribuindo para a formação do futuro professor, na medida em que, fazendo um exame do seu processo de leitura, pode tornar conscientes os saberes, preconceitos, leituras e experiências prévias, esquemas cognitivos, inferências ou as associações simbólicas que se dão na mente do leitor na hora de interpretar um texto e, também, porque uma visão poligonal da literatura nos permite, entre outras coisas, relativizar as verdades que tínhamos como únicas.


Nesse sentido, tentamos formar um leitor sensível tanto aos elementos lingüísticos como aos extralingüísticos, um leitor que seja capaz de reconhecer e descrever estruturas formais, contextos socioculturais, estratégias textuais, sem perder o prazer pela leitura, o gozo estético; um leitor que seja consciente das suas inferências, das relações intertextuais que estabelece e de outros procedimentos cognitivos – e afetivos – que fazem parte do processo de interpretação de um texto; isto é, um leitor que consiga vivenciar o fenômeno estético-literário em toda a sua complexa dimensão e dar conta, com sustento teórico e a partir da reflexão sobre a experiência pessoal de leitura, do papel ativo que o leitor tem na construção de sentido do texto, neste caso, literário.

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